3 de jan. de 2011

Caim - O Garanhão

Sem nada mais para fazer - bem assim como Lula nesses primórdios da segunda década do terceiro milênio - Adão repousava nu e cru debaixo das maviosas frondes de uma acácia desse tamanho. Peladão, como tinha vindo ao mundo, deixava as balacochetas ao léu - ao Deus dará - pulando e andando para os pudores que hoje obrigam a vida bela a cobrir de tangas as mangas da humanidade.

Estirado pelas sombras tranquilas do universo, o primeiro-homem revelava um esgar de aparente felicidade, pouco se lixando para o planeta que acabara de macular com as pingoladas escapistas das trepadinhas do dia. Ele dava uma, sempre que podia.

Coçou o penduricalho, cofiou as madeixas pubianas e enfiou os dentes vorazes numa maçã com casca e tudo para, em seguida, jogar displicentemente o pomo fora. Arrotou peru e dormiu como um porco, com jeito assim de quem nem sonha com a instabilidade da casa de quem vive de bolsa-famiglia.

Arte-Reprodução/Phillip Martin
A poucos metros dali, a algaravia dos filhos entrava por um ouvido e saía pelo outro - que nem bala perdida na hodierna versão da vida carioca.

Eva, mais que penetrada, compenetrada fundia a cuca com os primeiros pontos de tricô do mundo. Era a raínha do lar. Tipo assim dona da Minha Casa Civil, Minha Vida. Ela sabia que, muito mais do que tratar da marmita doméstica, tinha uma cacetada de coisas para fazer naquele alvorecer da Terra.

Sem pílula, sem DIU e sem termômetro, só mesmo tirando fora na hora boa é que Adão deixava de ser um risco para a densidade demográfica. Afoito e desajeitado, nem Jontex adiantou para a implantação da primeira falta de planejamento familiar do globo. Isso, de qualquer forma, mal não fez. É que, naquelas priscas eras, nem mesmo a CNBB cogitava de incestos e outras bolas fora, na hora de um irmão comer uma irmã.

Fazia sentido, já que ninguém mais havia para traçar pelas redondezas do epicentro do Big-Bang. Adão dava um tirinho atrás do outro. Melhor, da outra. E não tinha bala perdida.

Eva, já embuchada outra vez, se mancava no crescimento da prole - que um terceiro rebento já vinha por aí. Amante e esposa, Eva cuidava de ser mãe fidelíssima, ciente de que logo seria avó. E se danava a tricotar para que nada de agasalho faltasse no porvir de sua crescente família, naquele lar, doce-lar, latente ninho de amor fraterno e intermitente. A torcida é para que, dessa vez, viesse uma menina.

O paraíso terrestre só não era paz infinita, pela farra dos garotos que, libertos pelas planícies emprenhavam a pradaria de gritos, susssurros e gargalhares, num permanente folguedo.

Com um olho no padre e outro na missa, Eva tratava de tudo: do seu belo adormecido, dos enjoos da gravidez, do seu tricotar primata, da brincadeira de pega-pega dos manos safardanas. Mas, prevenia com todo zelo:

- Cuidado, meninos.
- Cuidado, o quê, mamita?
- Com esses arretos. Brincadeira de mão, dá rompimento...

Caim e Abel, nem te ligo. Prosseguiam no roça-roça descobrindo sensações, gostando do que faziam. Um dava tapa no outro, passava a mão, cuspia na cara. Outro retrucava em seguida, ensaiava um pontapé, pegava o maninho pela espiroqueta, saía correndo campo afora com o pingente do outro espremido nos dedos, dando pulos de alegria com o estupor que notava na careta do pobre mano. Volta e meia a mãe se metia:

- Tô avisando, isso vai dar rompimento...
- Pára com isso, mãe... Ocê faz isso com o papi.

E os anjinhos não davam a mínima, se abraçavam, se enrodilhavam, se rebolavam no chão, num tremendo ronca-e-fuça. Adão, nem aí. Dormia o sono dos justos, a mais não phoder. Eva, atenta e forte, tocava seus afazeres e, sem bancar a supermãe relegava seu sexto-sentido a um plano secundário. Na falta de Trol e Estrela, sobrava brinquedo de mão. Coração de mãe não se engana. Ela cansou de avisar:

- Esse puxa-puxa, pega-pega, ainda vai dar merda. Depois vão se queixar pro bispo!...

Os guris medonhos nem aí. Dê-lhe que te dê-lhe deboche e esfregação. Tanto brincaram assim desse jeito que a coisa ficou preta. Abel pegou Caim por trás e foi fundo na gozação:

- Te peguei! Te peguei!
- Me larga, Abel... Por trás não vale.
- Olha só o que eu achei!
- Ai, ai.,.. Aíííí não!!!
- Que bom... que bom... Hmmm
- Sai daíííí´... Saaaai, Abel!!!

Muito tarde, Inês já era morta. O brinquedinho virou bagunça, eis que bunda de irmão não é nenhum Complexo do Alemão para qualquer um ir assim entrando e tomando conta. Abel deitou e rolou. Caím, desbundado, ainda de quatro depois do ato, descortinou o sorriso sacana que se arreganhava na cara do primeiro papa-mundi. Grunhiu de raiva, sacudiu a poeira e deu a volta por cima.

Desancou uma porrada nas ventas de Abel com um paralelepípedo que desmanchou as fuças do primeiro comedor de buzanfan da história universal. 

Naquela mesma hora, o Criador foi obrigado a inaugurar  o inferno. Nem tanto para castigar o abusado, quanto mais fosse para mostrar que céu não é lugar de fanchão espevitado.

Saco cheio porque Eva interrompera seu tranquilo dormitar só para lhe narrar a versão que estava nas entrelinhas do que se passara entre os dois safados, Adão sepultou Abel à sombra da acácia.

Imbecil, expulsou Caim de casa. De tão só e escorraçado, aquele que foi tido como primeiro gay da Terra, saiu a correr pelo mundo. Essa correria durou muitos e muitos anos. Tempo suficiente para traçar muitas e muitas filhas de Eva que, ao correr dos anos, lhe apareciam de mão-beijada.

Por uma delas ficou sabendo que, pouco depois de sua fuga de casa, Eva deu à luz um par de gêmeos: um menino e uma menina. Logo aprenderam a brincar de médico.

Foi assim, comendo a parentada que vinha de lá, que Caím emprestou sua eficaz colaboração ao surgimento das primeiras gerações de habitantes do planeta, sem correr o menor risco de ser processado, ou de ir em cana por incesto ou pedofilia consanguínea.

É que, por desgosto e represália à incompreensão dos pais naquela distante manhã de tragédia familiar, assim que tirou razoável distância do lar que o repudiara trocou de identidade e, no primeiro cartório do céu que encontrou pela frente, registrou-se sob o codinome de - acredite, se quiser! - Garanhão de Pelotas.

A gente tem que tirar mesmo o chapéu para ele. Por honra e glória do Garanhão hoje, no mundo, somos todos filhos de Deus.