24 de mar. de 2013

Boletim Sanatorial

Sanatório em Reconstrução
Diante da necessidade de reconstruir alas novas e outros corredores sanitários e levando em conta algumas dificuldades insanáveis de tratamento de urgência a postagens e fotometrias, o SANATÓRIO DA NOTÍCIA entra, a partir desta data, - 24/03/2013 - em regime de alta para uma necessária e urgente quarentena. Estamos mudando de endereço e de identidade. E tudo então será eterno enquanto dure. Com o transplante momentâeno da nossa equipe de trabalho para outro nosocômio de informação, prometemos voltar a atendê-los, quando menos estiverem esperando. Por hoje, gratos e revigorados pelas suas milhares e milhares de atenciosas visitas nesse período de internação, convidamos para que continuem nos contagiando com a sua companhia no novo endereço, já com novo nome, mas sob a mesma direção: CADEIA DE NOTÍCIAS, vulgo www.cadeiadenoticias.blogspot.com

28 de dez. de 2012

Polícia não tem preço

Morando na Zona Leste de São Paulo, aquele pobre vivente - o Garanhão de Pelotas, travestido de migrante nordestino, quase de Guaranhuns - já não aguentava mais aquele tal de Zé Bedeu, um bebum xarope que, dia sim e outro também, ia azucrinar a turma boa de happy hour nas mesinhas do seu boteco.

Mais que chato, aquele pinguço roliço, de cabelos crescidos, óculos combinando com o sotaque caipira enchia o saco de todo mundo. Inconveniente, provocador, não deixava ninguém em paz. Ele se metia na vida e nas conversas de todo mundo e ainda queria impor suas idéias, como se fossem estilhaços de guerrilha urbana. Isso, sem contar as piadinhas descabidas e cansativas para cima das meninas da vizinhança que passavam por ali. Zé Bedeu se achava bonito e cheio de charme. Tinha mesmo era veneno de sobra. E de cobra.

Há mais de cinco anos, desde que Setembrino Inácio inaugurara o seu barzinho de beira de calçada que o beberrão incomodava. Já levara até alguns tabefes de uns que outros, mas era brasileiro, não desistia nunca. E de tão insistente, Zé Bedeu nem se importava com os bofetões. Pior que isso, devolvia as agressões. E muito pior ainda, vingativo e cheio de manha, até levava vantagem. O cara era uma espécie de minoria majoritária; um porre. Pior, uma ressaca permanente.

Setembrino Inácio lotou. Não havia mais saída. O seu negócio estava indo pras cucuias, porque ninguém mais aturava o inoportuno. O comerciante já não sabia mais o que fazer. Uma coisa era certa: ele não contrataria nenhum consultor republicano para não ter medo de ser feliz.

Foi então que, naquele quase fim de tarde de uma providencial quinta-feira sem paixão, dois motoqueiros, surgidos assim do nada, entraram em seu bar ainda às moscas naquela hora e, ao invés de pedir uma birita, simplesmente lhe rosnaram:

- Assalto! Perdeu, perdeu! Passa a grana.

Setembrino na maior calma, passou os trocados que tinha no caixa e, em vez de afastar-se dos bandidos, aproximou-se cuidadosamente deles e lhes segredou qualquer coisa bem pertinho das orelhas. Atrás da porta do banheiro, um cachaceiro de boa paz e muita vontade de mijar quase se borrou de medo. Comeu em tranca, não deu um pio; só bancou a coruja: prestou muita atenção.

Os motoqueiros nem notaram sua presença e se mandaram. O fim do dia foi surpreendentemente normal no boteco. Mais movimentado até que nas noites anteriores. Vendeu bolinho de batata recheado, churrasquinho de gato e cerveja que não parava mais. Ninguém deu bola pro incomodativo Zé Bedeu que, é bom dizer, estava com a corda toda.

Dia seguinte, sexta-feira pecaminosa com a noitinha chegando com a turma do trago de sempre, Zé Bedeu, o Guerrilheiro da Paulicéia já estava no pedaço. Nem chegou a perturbar ninguém. Mal puxou uma cadeira para sentar-se à margem da roda dos amigões que bebericavam os primeiros goles, levou um safanão de um motoqueiro-carona.

Quando quis reclamar, foi atingido por um tiro só e certeiro, no meio do peito. Estrebuchou e caiu mortinho da silva. Os motoqueiros se mandaram. A clientela ficou. A polícia chegou. Veio a ambulância e o corpanzil do briguento acabou no IML.

Sábado, manhã cedinha ainda, Setembrino Inácio abriu as portas do botequim e logo recebeu a visita do bêbado corujão do assalto de quinta-feira. E ele já foi peitando o dono do bar:

- Eu vi tudo, Setembrino. Quero mil pratas pra ficar calado.
- Quê?...
- Mil pra ficar calado. Topa?
- Topo...
- Então tá feito. Mas me diga uma coisinha: quanto ocê pagou praqueles motoca?
- ENada. Nem um tostão. Eu só disse que o Zé Bedeu era policial.
- Epa! Essa foi boa. Mas agora, eu quero o dobro. Duas de mil tá bom... Topa?
- Topar, eu topo. Mas eu vou dizer pros motoqueiros que ocê também é polícia... Topa?!?

O achacador de balcão, deu meia volta, saiu a pé, sem rumo e mais depressa que um motoboy com prazo de entrega vencido. Nunca mais botou os pés sequer na calçada do bar do Setembrino Inácio, hoje o mais seguro e popular happy hour da Zona Leste de São Paulo.

MORAL DA HISTÓRIA - Paz e segurança hoje em São Paulo são só uma questão de boa conversa. Polícia não tem preço.

15 de nov. de 2012

Meus óculos Prada

Há certos dias de Garanhão de Pelotas que nem eu mesmo aguento. A jornada foi exaustiva. Mal tomei banho matinal, fiz um quebra-jejum às pressas e encarei com ferocidade inaudita o computador. Abri o arquivo de um dos três livros que escrevo a um só tempo, já com atraso quanto ao prazo de entrega dos originais à editora.

Comecei o sugestivo capítulo 24 do "Crime na Ponte" um romance policial baseado em acontecimentos fictícios cometidos de verdade por quem tinha amplo domínio dos fatos. Quando me dei conta estava faminto. O relógio de carrilhões de ouro maciço 24 quilates, assinalava aconhegado à parede dos fundos do meu escritório doméstico nada menos do que 23h47.

Acho que aquela pequena sensação de dormência na região glútea já se projetara há bom tempo para o estômago. Fui à cozinha, assaltei a geladeira e montei às carreiras o meu sanduba preferido, o croque montier.

Usei sem cerimônia quatro fatias de brioche, dois ovos, um copo de creme de leite fresco, queijo ralado tipo gruyère, juntei duas fatias de presunto cozido e temperei com sal e pimenta-do-reino. Saboreei o meu croque montier deglutindo aquilo que em Pelotas - a pátria pequena que deixei lá no Sul - se chama de frapê de banana. Morta a fome que estava me matando, desliguei tudo e me desliguei de tudo.

Cansado, ignorei - como todo mundo ignora a banheira de hidromassagem - e fui direto à ducha do fim de mais um dia de intensa labuta intelectual. Estava caindo pelas tabelas. Fui para mais uma jornada de alcova. Entrei às escuras no quarto, para não acordar nenhuma das três secretárias que estavam a dormitar sobre minha cama tipo king round bed, long, very noble.

Tateando, sem enxergar um palmo diante do nariz, deitei-me sem ruído e sem querer incomodar nenhuma delas. Aí, senti falta dos óculos. Caramba, o Garanhão de Pelotas também pode ter deficiências visuais. Eu tenho.

Levantei-me fui ao water closed, escovei os dentes e voltei para o doce aconchego com a ruiva, a loura e a morena. Hiii, esqueci dos óculos! Refiz a caminhada até à patente, como se denomina a casa de banho e de outras necessidades, na minha doce terra natal.

Procurei os óculos na bancada de mármore de Carrara, daqueles que foram usados pelos romanos para constuir o Panteão. Não os encontrei. Voltei uma vez mais para os aposentos onde, normalmente e de forma até anormal, pratico a minha modalidade esportiva preferida, o jogo de lençóis.

Intrigado, me irritei com o cetim charmouse dos meus travesseiros e decidi que, de uma vez por todas, encontraria os meus óculos Prada que tanta falta me fazem, até quando durmo no ponto de quando em vez.

Eis-me no banheiro uma vez mais. Deparo com minha cara estafada e amuada no espelho art-déco modelo Burberry e... Lá estavam eles, os meus óculos, meus indispensáveis óculos. Bem onde eu jamais poderia esperar que estivessem: diante dos meus olhos, na minha cara, em cima do meu nariz!

Apaguei as luzes. Voltei pé ante pé para a minha confortável king round bed. Mal me deitei, as meninas lépidas e faceiras que a tudo assistiam silentes, como caladas da noite, explodiram em uma estrondosa e debochada risada geral. Riam da minha cara, na minha cara! Não pude ficar brabo com elas. Tinha sido mesmo um fiasco. Entrei com tudo no seu deboche.

Elas não me deixaram dormir. Estou velho e coisa e tal, mas nessas horas mais que usado, sou abusado e vejo tudo com muita clareza. Agora, com licença, vou para a hidromassagem que já é outro dia. Preciso terminar logo os originais desse livro. A editora está em cima de mim.

Ei, gurias! Ei, gurias medonhas, cadê os meus óculos?!?

MORAL DA HISTÓRIA - Nem sempre a falta de atenção nos faz deixar cair ao chão o ouro e as pérolas que estão ao nosso alcance. O desatento sempre pode, num dado momento, notar as preciosidades que estão a sua volta. Aí, então, é só tomá-las para si.

18 de out. de 2012

Um Dia de Fúria

E então vos digo, lá vinha eu num daqueles dias aziagos de Garanhão de Pelotas em que, por alguma infausta interferência dos deuses da vida, naquele tempo eu era o chefe de gabinete do chefe do chefe da Casa Covil da quadrilha dos propineiros.

Vinha eu, em verdade vos digo, adentrando a sala do Capeta de i tutti capi, meio contrariado de tanto receber ordens de um lhegalhé analfa, filho da mãe que nasceu tal qual a ele, sem tirar nem pôr.

Vinha eu, atentai meus nobres companheiros, engasgado com meu servilismo, mantido e engolido apenas pelo salário nababesco e algumas comissões decorrentes de consultas concedidas por baixo dos panos, mercê de minha proximidade com o que se pode cognominar de O Filho do Brasil.

Vinha eu, meus diletos bons e batutas, arrastando os últimos latidos de minha fidelidade canina, em direção ao grande mestre da República dos Calamares, para oferecer-lhe meus ouvidos à guisa de penicos republicanos.

Como já vos ensinou certa feita o divino condutor dessa democracia meiaboca, "a gente temos duas orelhas: uma pros aplauso, outra pros apupo"...

Pois, este Garanhão de Pelotas que vos fala, estava naqueles dias calamitosos em que a orelha-urinol está transbordando. Ao me aproximar da douta e honorável figura, só tive ouvidos para a voz rouca das ruas que ecoava no terceiro andar do Palácio:

- Aêê, companheiro Garanhão, tu já chegou?
- Não, meu divino mestre e companheiro, eu ainda tô lá na esquina...

O que era um riso hipócrita de primeiro cumprimento matinal desferido por um dono da casa para seu subalterno cotidiano, transformou-se num esgar prontamente vingativo. Eu conhecia bem aquele feitio de boca quando o Cara te devorava com os olhos. E veio a segunda pergunta imbecil do dia:

- O que é isso, companheiro?
- Isso é o seguinte, tô de saco cheio.  
- Ei, eu sou o presidente dessa República! Que modos são esses? Não foi assim que eu ensinei vocês!
- Eu tô de saco cheio!
- Isso é jeito de me responder?!?
- É. Quando me fazem uma pergunta burra, eu respondo como um burro!
- Como assim?
- É só pro burro não pensar que é inteligente.

E fui dando meia volta. Não sem antes lhe dizer por cima dos ombros:

- Quero o meu boné da CUT que me pariu que eu já vou. Nunca mais me verás tu, cara de tatu!

E saí porta afora. Ao passar pelos seguranças avisei discursando de modo a ribombar o meu dia de fúria pela Rádio Corredor de portas já entreabertas:

- Diz pro chefe dos propineiros que eu tô de mal com o Capeta. Mas já vou avisando: sou um túmulo. Um arquivo-vivo. Não adianta me queimar! Se eu virar arquivo-morto, a imprensa daqui e a mídia internacional vão receber todos os vídeos e as gravações que espalhei por aí. Sou o Garanhão de Pelotas e não de Santo André.

MORAL DA HISÓRIA - É delicioso ter um ataque de loucura assim por pouco tempo, de repente e de pequena duração: é quando se dá por certo que nada precisa ser politicamente correto nesta vida. Muito menos num dia de fúria.

8 de out. de 2012

A Assemelhada

Lá se vão quarenta anos, mas lembro ainda que naquele dia eu desempenhava o papel de doutor-consultor Garanhão de Pelotas para assuntos de compra e venda de material bélico e artefatos afins.

Tinha uma entrevista marcada para as nove daquela manhã de sexta-feira no EMFA - Estado Maior da Força Aérea. E lá estávamos, eu e minha sócia Mery, para a tal entrevista que poderia render bons dividendos para a nossa multinacional e uns tirinhos lá que outros para os países pouco interessados na velha conversa do make love, not war.

Pontuais, chegamos às dez para as nove, no saguão do ministério. Devidamente identificados, nos encaminhamos para os elevadores. Havia uma fila razoável de cidadãos comuns diante de uma série de elevadores, todos à esquerda de quem entrava no corredor de espera.

Defronte, havia três elevadores, de portas abertas, guardados cada um deles zelosamente por seus respectivos ascensoristas. Na parede, acima das portas, uma placa indicativa nos colocava nos devidos lugares: Uso exclusivo de oficiais e assemelhados.

Eu já estava querendo me sentir mal com aquela discriminação, quando Mery me conduziu pelo braço para o elevador que estava sendo ocupado naquele exato momento por um major que acabara de chegar ao prédio. Mery entrou comigo à tiracolo e depois de cumprimentar o oficial com um leve sorriso, dirigiu-se à condutora do caixote móvel:

- Bom dia, por favor, quinto andar...

E lá iniciamos nós a subida rumo aos bons negócios. O major, afável, puxou assunto com Mery que estava de braço dado comigo:

- A senhora também é oficial?
- Não. Sou "assemelhada"...
- ?!?...
- Graças ao Imposto de Renda que me garante esses confortinhos extras.

E mais não disse, porque nada mais lhe foi perguntado. O elevador parou. Descemos os três. E nos dirigimos todos à mesma sala. Cerca de meia hora depois, o major nos atendeu. Não adiantaram o peso e nem a força dos nossos argumentos. Naquele dia não saiu negócio.

MORAL DA HISTÓRIA - A igualdade e o poder mantém entre si fortes laços. Às vezes, isso dá um nó na gente.

6 de out. de 2012

Mau-Humor Eleitoral

Sabe, porque hoje é sábado, eu levantei de bronca . E se você não quiser se incomodar, não me pergunte por quê. Levantei de pé errado e pronto. Este é um sábado, começo do fim de semana. Não tem nada a ver com ressaca de sexta, ou fastio de quinta-feira. Eu acordei contrariado.

Cale-se! Eu já vou explicar. Estou de bofes virados porque sou dono do meu nariz e pronto. Eu o torço para o lado contra quem eu bem quiser. Sou murrinha, enjoado, chato?!? Hodase el mundo yo no me llamo Raimundo, ni Clarimundo o Edmundo o Cudomundo!

Ou você agora, vai me chamar de pornográfico só porque não conhecia o codinome Cudo, ao qual se pode acrescentar qualquer prefixo, sem pruridos de crucifixo?!?

Eu me levantei assim, com a firme convicção de que regras foram feitas para serem quebradas e a cara de quem não gosta, também. E, antes que me esqueça, antipático é a sua avó torta que a direita já tá morta!

Eu acordei neste pleno início de fim de semana assim. De mal com a vida, de mal com o mundo e só por isso não quero que você me interrompa quando eu não estou sequer falando com você! Cale-se! Não me estranhe, mas saiba que ninguém acorda cretino, há quem - diferente de você, idiota - tire a noite para especializar-se em patifaria. E para esse tipo de gente a noite é sempre uma criança.

Então, porque estou com  a macaca, com raiva da vida, num desses dias em que até o banho de ducha me dá nojo, me sinto assim um passarinho, livre o bastante e capaz mais ainda de fazer cocô na cabeça de quem eu bem entender, ou de quem quer que se apresente sob meus voos livres.

Como nunca antes na história desse país, eu me sinto maravilhosamente mal-humorado. Por isso, não se metam hoje a testar meu mau-humor porque, no ato de fazer o primeiro xixi e depois escovar os dentes, eu já o testei e... me dei mal.

Bosta, hoje é sábado, quase domingo de outubro no Brasil, véspera de eleição. Queriam que eu me acordasse o quê: feliz da vida pelo direito de exercer a democrática obrigação de votar num mequetrefe desses? Olha, não sou de guardar rancor, mas não esqueço jamais aquilo e aqueles que me fazem mal.

Não, não é que eu vá votar em branco; não, não é que eu vá anular meu voto; não, nunca jamais, não é que eu vá exercer o direito de, em sendo septuagenário - e o Garanhão pode ser septuagenário e centenário e milenar quanto queira - me prenda a praticar a liberdade de isenção que a lei eleitoral me faculta... Não é que seja isto. Não voto hoje porque sou feliz como uma pássaro, faço cocô na cabeça de quem me dá na cabeça.

Eu hoje me levantei assim. Em vez de votar vou tomar um baita porre. E ninguém, nem mesmo o Tribunal Superior Eleitoral, poderá mandar me prender. Orra, se beber fosse pecado, Jesus Cristo teria transformado a água em suco e não em vinho!

Vou beber, por pura rebeldia. Levantei contrariado, pô! Estou de mau-humor porque quando essa cretinalha sorri é porque já sabe em quem pôr a culpa. Então, porque me levantei de maus bofes, venha comigo. Siga meus passos nesse dia de eleição: vote em ninguém!

Venha comigo. Eu sou bom companheiro; bom e batuta; você é o filho da mãe: beba, ao invés de votar. O porre vai ser o mesmo. E a ressaca pior ainda. Siga-me. Eu só dou bons conselho; não tenho a menor vocação para bons exemplos. Não sou como eles.

Siga-me. Eu sou o Garanhão de Pelotas. Eu me responsabilizo pelo que digo, não pelo que você acha que entende.

MORAL DA HISTÓRIA - Com o mau humor deste domingo de eleição, eu sou tão pernicioso quanto 99,9% dos candidatos - e qualquer sugestão que lhes apresente só vai piorar qualquer mau-exemplo.Sigam-me os que forem brasileiros!

30 de set. de 2012

Uma tristeza de matar

Eu não andava lá essas coisas. A vida de Garanhão de Pelotas que levo, me multiplica facetas de personalidades que reparto com meio mundo e nego à outra metade do planeta. Hoje amanheci à noite. Cerca de 11 horas. Bem cabareteiro.

No mais puro estilo fanchão dos anos dourados, lá pelas cercanias de 1960, em frente ao espelho da espelunca que eu fazia de rendez-vous, "abotoei" a cabeleira com um pente Flamengo de estimação, escovei os dentes, comecei a mascar um chiclete Adams, ajeitei os suspensório, a gravata de linha preta trançada.

Enquanto vestia o paletó, olhei-me apaixonado por minha fina estampa, aprovei-me dos pés à cabeça que cobri com um chapéu Ramenzoni e sai a passos largos com meus sapatos Clark de duas cores e saltos três centímetros acima do nível da Lagoa dos Patos. Peguei meu Karman Ghia vermelho e me toquei para a Pensão da Isaura Ruiva, a mais nova concorrentes das duas outras isauras, a preta e a branca.

Estas últimas já tinham dono. Isaurinha Ruiva era meu alvo. Ela já tina me dado algumas "entradas". Chegava a hora do bote. Eu seria o seu rufião pro resto da minha chama.

Cheguei ao bordel da Ruiva por volta de meia-noite. Hora boa para dar uma volta pelo salão, aconchegar-me na mesa 5 bem pertinho do Jazz Lua de Prata, pedir um Dry Martini - que naquela época ainda não era "drinque de fresco" - e pegar a primeira mulher bonita que cruzasse seu olhar comigo. Um olhar que fosse bonito, de índia domada; um olhar adqueles misteriosos que fazem a gente pensar copisas que ñem sequer imagina.

Pois, eis que já armado de uma taça em cone, cheia de pedras de gelo e uma azeitona perfurada a palito, pego da mão de uma china linda e entristecida que passava pelas bordas de minha mesa, assim como quem vai pras pitangas.

- Guria bonita, vem comigo, vem... - murmurei, enquanto devorava seus seios num decote generoso.
- Largue minha mão, meu par foi ao WC e já volta - disse-me desvencilhando-se de mim.
- Mas eu gostei dos seus seios... - ousei, já prevendo a primeira frustração da noite.
Ah, você cobiça os meus seios... Então até logo! - E virou-se de costas pra mim, saindo dali.

Eu sou um gentleman, mas não aguento desaforo. Sou um cara bom que nem o Lula, só não gosto de ser contrariado. Antes que ela desse três passos, devolvi-lhe o adeus num tomo exibido o bastante para entrar pelos ouvidos dos cabareteiros mais próximos:

- Pois, olhando daqui, querida, gostei mais da sua bunda!... Mas pode ir que você não faz meu tipo.

Aqui ó que ia pagar o vexame de um "carão" de uma mulher de vida fácil. Aqui ó, uma banana pra ela! Nem bem tinha voltado toda a minha atenção para a minha taça fui surpreendido pela silhueta de Maria Julieta, uma potranquinha de metro e meio, pouco mais que isso e magra como um esqueleto ambulante. Ela sentou-se com ar desenxabido, mas com um olhar profundo, caído cheio de mistérios.

Opa! Era esse tipo de olhar que eu estava esperano enquanto fazia hora para conquistar Isaura Ruiva. Antes que eu lhe desse permissão para sentar-se a meu lado, ela já estava com os cotovelos sobre a mesa, as duas mãos ao redor do rosto extremamente expressivo que parecia querer dizer alguma coisa. Quando me aprumei para lhe dirigir a honra da minha palavra, ela foi se adiantando:

- Sou uma infeliz, Garanhão...
- Como assim?
- Ninguém me ama.
- E daí, guria, tu não caiu na vida por isso mesmo?
- Foi, mas é que o meu último romance acabou... Tô desiludida. Pra sempre.
- E o que tu pensas fazer? - dei trela para Mariazinha.
- Acho que vou me matar.
- Ah é, vais te matar? Então toma. Te mata!- tirei a mini garrucha do bolso e botei na frente dela.

Ela me olhou profundamente, olhos nos olhos, empurrou a arma na minha direção, a cadeira para trás, levantou-se e saiu com os olhos cheios de lágrimas.

Acompanhei seus passos até a escadaria que dava para os cômodos no segundo andar. Ela sumiu. Não ouvi tiro nenhum. Já era quase uma hora quando, desceu fulgurante pela mesma escadaria, a exuberante Isaura Ruiva. Tirei-a para dançar.

No meio do salão, esbarrei num par muito animado. O galã eu não conhecia, mas a dançarina era Mariazinha, lépida e faceira. A noite saiu melhor do que eu esperava. Só descobri que não gostava de Isaura Ruiva e ela não gostava de mim, cinco dias depois, quando o calendário de parede do meu chatô já anunciava outro final de semana.

MORAL DA HISTÓRIA - Quando você sabe usar do argumento certo na hora, no lugar e com a pessoa certa, você não precisa estar certo. 

9 de set. de 2012

Rede McGaranha'S

Inventar a vida sempre foi fácil para mim. Ou então, eu jamais seria o impoluto, safo e resoluto Garanhão de Pelotas.

Naquela noite do Século XX, depois de muitas idas e vindas ao circuito de cinemas da cidade - arte que sempre curti - notei que a carrocinha de pipoca diante do Derby d'Oro, maior sala de espetáculos dos meus bons tempos, tivera o triplo do lucro que o dono do cinema alcançara naquela temporada pouco alviçareira.

Sai dali e já no outro dia comecei a comprar todas as carrocinhas de pipoca da cidade. Criei a primeira rede McGaranha'S Pop Corn do mundo. Fiquei rico.

Rico e burro. Comprei todos os cinemas. Vendi pipoca e entradas como nunca. Até que vieram as locadoras de vídeo. Quase quebrado, vendi a rede McGaranha'S Film Circuit e comprei locadora por locadora. Fiquei rico, de novo.

Enriqueci da noite pro dia e empobreci mais depressa ainda: chegou a Internet. Dancei. Fui trocando a rede McGaranha'S Film Circuit por sítios eletrônicos. Fiquei rico, uma vez mais. E burro. Estou entupido com a McGaranha'S Rental Videos e sua matriz a McGaranha'S Eletronic Sites.

Até agora não consegui comprar o Google. Quero montar a McGaranha'S Google, alguém se habilita?!?

MORAL DA HISTÓRIA - Nem sempre o Garanhão de Pelotas tem que ser um vencedor. Mas, às vezes, ele é brasileiro. Não desiste nunca.

2 de set. de 2012

Do Metrô ao show do Quintas de Fevereiro

Sexta-feira, prenúncio de fim de semana. Resolvi andar de metrô para desanuviar a cabeça. E lá fui eu, na pele do escritor Garanhão de Pelotas, da Estação Central de Brasília rumo a Águas Claras, núcleo habitacional classe média alta a meio caminho de Guará, Taguatinga e outras cidades satélites.

Coisa assim só para passar o tempo; ir e voltar; curtindo uma rápida convivência itinerante; viagenzinha de vai e vem em horário folgado de mais uma manhã de vida útil no Distrito Federal. Lá fora, o sol era um esplendoroso anúncio de que se tratava do Rei dos Astros.

Na primeira parada, descem dois comportados passageiros e sobe um grupo de quatro gazeteiros - um gay pra lá de assumido e três garotas, todas elas de dentes de lata, cheia de arames e pingos de solda nos risos tipo gargalhada debochada.

Barulhenta, a molecada se acomontoou na bancada à minha frente e, com o menosprezo pelo tempo, espaço e ouvido dos outros, foi gargalhando por um monte de besteira que saía da gazela deslumbrada, líder inconteste da turma de mal-educados falsos porta-vozes da geração que nos enche o saco.

Desviei os olhos daquele monturo, mas não consegui tampar os ouvidos o suficiente para evitar o som estridente, exagerado e agressivo de suas piadas desgraciosamente infames.

Mochila murcha sobre os ombros arqueados, o efebo de brinquinhos de argola nas duas orelhas, sombra nos olhos negros de jabuticaba e trejeitos de musa morena do subúrbio, arrancava aplausos esparsos e suspiros de admiração das suas três adoradoras de folguedos cotidianos. Aula que é bom, ninguém ali queria.

Fui obrigado a escutar. O babaquinha tresloucado, se exibia quanto podia:

- Aqui ó! Quero ver agora me chamarem de biba! Quero ver fazerem bullying comigo! Eu não sou mais uma biba! Eu sou um Bicha... Bichaaaa! Biiiicha poderoooosa! - e esperava a reação da galerinha.
- Quéquequé, quéquiqui, quaquaquá...
- Sou bicha poderoooosísssima! O delegado tá do meu lado. Qualquer coisa digo que é bullying e mato a pau! A pau, viram? Paaau!!!
- Quéquequé, quéquiqui, quéquequé...
- A lei tá do meu lado. Sou bicha, bichinha, bichona! Sou aquele que sou e pronto! Dou pra quem quero e quando quero!
- Quéquequé, quéquiqui, quéquequé...

Um senhor de boa idade. Boa idade é bondade. Um senhor pra lá de passado nos anos, incomodado pelo comportamento imbecil do grupelho, reagiu com sutileza:

- Ei, amiguinho, quanto é que está o jogo aí?
- Como assim, meu senhor?... - Fez-se de desentendida a biba exbicionista.
- É que você não para de irradiar desde que entrou aqui...
- Ah, vai te deitar vinaaagre! - desdenhou o safardana.

E o metrô ia que ia. Até que não aguentei. Aquilo era demais para o Garanhão de Pelotas. Larguei de lado a janela que me mostrava uma Brasília linda correndo a meu lado e me virei para o espalhafatoso:

- Dá pra ficar quieto, ô Bicha Poderoooosa?!?
- O quêêê... Bicha Poderosa? Você tá me chamando de biiicha?!? Quer um processo por discriminação, seu bosta velha?

Aí me levantei. Fui até o idiota e, esganando-o com a mão direita, enfiei-lhe a esquerda no saco, de tal forma que o dedo pai-de-todos se imiscuiu em seu esfíncter:

- Bosta velha é o que sai da tua cloaca, putão fedorento! Cala boca que ninguém aqui tem que escutar suas basófias, chinelão de almanaque!
- Aaaai, aaai, ocê tá me machucaaaando! Tenho meus - cof, cof, ufa! - tenho meus direeeeitos...
- Fecha a fossa, seu berdamerda! Eu já comi 20 vezes a tua mãe e não ando por aí fazendo estardalhaço dessa besteira.

A porção palhaço da biba que tinha assumido o seu lado poderoso se desmanchou em seguida e virou pranto social. Logo o exibidão virou um reles excluído da Lei Maria da Penha. Era só um perturbador, não um típico exemplar do terceiro sexo desse terceiro milênio. Um pernicioso que, com um pé na bunda, fiz descer na próxima estação.

Pouco depois, começava a viagem de volta. Cheguei na Estação Central do Metrô de Brasília a tempo de chegar em casa e sorver um bom uísque, tomar um banho melhor ainda e me arrumar todo para assistir a mais um show do Quintas de Fevereiro, a banda de rock mais afinada e comportada que conheço, num pub lá de Águas Claras. Ganhei o fim de semana.

8 de jul. de 2012

O Pior Cego

Era nossa última noite em Mar del Plata, depois de uma semana de sucesso nas piscinas paraolímpicas daquele frio e encantador balneário argh!entino, onde se realizara mais uma etapa classificatória para os Jogos de Atenas, em 2004.

Já de folga e de malas quase prontas, nos reunimos no apartamento de um dos dirigentes da comitiva brasileira e começamos a devorar pizzas, umas atrás das outras e vinhos, uns atrás dos outros, só para matar o tempo até chegar a hora de embarcar, na manhã seguinte, para o aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires.

Eu estava na companhia de três cegos. Piada é que não faltava. Uma bengalada atrás da outra. Cada um tinha direito a quantas histórias e anedotas quisesse contar e ouvir.

E lá veio então, a pergunta que não queria calar:

- Qual é o pior cego? - quis saber o vice-presidente da delegação.
- O pior cego é o que não quer ver - saltou logo, o diretor-geral.
- Nada! - disse o presidente - O pior cego é aquele que quer ver!

E eu, simples assessor de imprensa, vidente mas com uma visão ridícula do ambiente, ao invés de ficar calado, me exibi expelindo uma besteira com bafo de múmia de 2 mil anos atrás:

- Bobagem, o pior cego é aquele que é surdo e mudo também.

Peguei pesado. Pegou mal. Ninguém mais pediu pizza. E acabaram com o vinho falando só coisas sérias. Acho que foi até para que eu pegasse os meus pezinhos e me mandasse logo para o meu quarto.

MORAL DA HISTÓRIA - Quem perde o amigo, mas não perde a piada, corre o risco de perder o emprego também.

3 de jul. de 2012

O Melhor do Ano

Um dia, faz tempo, coisa de 15 anos mais ou menos, recebi um prêmio de "Melhor Jornalista do Ano". Era de uma revista-relâmpago cujo nome deixo pra lá, pela efemeridade e por respeito à iniciativa. Editada por gente rica formada em jornalismo, durou uns dois ou três anos. A revista durou isso, não o prêmio...

Na noite da festa de entrega do troféu, no saguão do Grande Hotel, eu fui lá e entre canapés, refrigerantes - eu era abstêmio convicto na época - e uns aplausos de claque ocasional, cometidos por interessados em possíveis entrevistas no meu programa no SBT agradeci a homenagem. Fui rápido para não ser lulático:

- Obrigado pelo troféu. Ele me deixa feliz neste momento. E também me deixa triste porque sou jornalista há 34 anos e só agora sou eleito melhor do que os outros que até aqui, pelo visto, sempre foram melhores do que eu. Mais que triste, fico preocupado: se eu não for eleito o "melhor" no ano que vem, acho que vou trocar de profissão. Não admito dar pra trás em nada nessa vida. Obrigado pelo troféu... Ele é pesado demais para mim.

Deixei o troféu em cima de uma mesa onde rolava o coquetel. Pouco depois, saí de fininho. Nunca mais fui eleito o "melhor jornalista do ano".

MORAL DA HISTÓRIA - As boas intenções podem nos ferir a qualquer momento; até nas melhores ocasiões.

20 de abr. de 2012

Caim, o primeiro Robin Garanhão da Terra

Naquele entardecer divino, ao Leste do Éden, sem mais o que fazer, estava Adão a cofiar placidamente seus pelos pubianos, mirolhando Eva trocar pela terceira vez naquele dia a mesma folha de parreira, quando Caim chegou aos prantos e aos gritos de uma dor que parecia lancinante:

- Matei Abel! Matei Abel!...
- Bandido, mataste teu irmão?! - bradou furioso o seu pai.
- Ó tu, malfeitor! Mataste teu único irmão! - choramingou Eva.

E, para que a história oficial da vinda da primeira grande família para a Terra não sofresse solução de continuidade, Caim se explicou, antes de dar no pé e ninguém, nunca mais ter notícias dele:

- Mãe, mãezinha; pai, paizinho... Olhaqui, a gente tava brincando de luta. De Batman e Robin. Eu cai por baixo de Abel. Tentei me livrar, mas ele... Ele... Ele me comeu, pô!

Adão olhou para Eva, com cara de quem já tinha avisado que aquele tipo de brincadeira sempre acaba em rompimento de, rompímento de, de... Bolas, a vida é um buraco!  Desligou-se daquela mazanza e virou-se para excomungar o filho que sobrou:

- Viado! Robin!
- Viado, um cacete, meu pai. Peguei uma pedra e esborrachei a cabeça dele!

E mais não disse. Com uma lágrima de dor e outra de saudade, saiu em desabalada carreira rumo a lugar nenhum. Nunca mais viu os pais. E nem sequer, viu o sorriso luxurioso, cheio de raiva e de orgulho que se abria na cara de Adão.

MORAL DA HISTÓRIA - Caim pode ter sido o primeiro viado, mas não o primeiro malfeitor. Adão já era bem pior que ele. Começou traçando a própria irmã. Foi o primeiro Serial-Malefactor da História Oficial da Humanidade: passava o dia inteiro fazendo malfeito com a incansável e dadivosa Eva.

RODAPÉ - Milhares e milhares de anos depois Caim fixou residência no princípio do Cone Sul do Mundo. Virou garanhão daquelas redondezas, mas quando isso se deu, já era um pouco tarde.

11 de abr. de 2012

Festa de Formatura

Tamerda! Eu também sou avô! Sou gente, apesar de Garanhão de Pelotas! Gente que sente. Por exemplo, quer saber? Meu neto, primeiro e único, se forma na segunda-feira, na UnB, em Brasília; diploma-se com louvor em Publicidade e Propaganda. Publicitário, enfim, que nem seu avô!

E então, no domingo vai ter festa aqui no nosso solar. Churrasco de carnes brancas e vermelhas; mal-passadas e ao ponto; de costela gorda e picanha maturada; de beliscatessens a chimarrão e muita, muita caipirinha, acompanhada de "cacetinhos" recheados de cebola, tomate e linguiça de porco e de rês cortada a facão.

E aí, nessas vésperas, eu telefono então para um velho e bom amigo de bancos escolares, hoje médico dos melhores - daqueles que já não fazem mais -  e lhe conto a boa nova: meu neto vai sair ao vô, levará a vida numa boa, comendo de tudo e comendo todas; criando slogans e lançando marcas de fazer sucesso e ganhando as graças de vendedores e compradores, de homens e mulheres e de todos e tudo mais, comendo cada um, muito juntos num swing sociocomercial sem tamanho e sem nenhum prazo de validade.

Foi quando ele, o meu amigão de infância, me disse, com a alegria comedida e saudável dos bons médicos que, claro, estaria na festa, com muito prazer, muita birita, comes e bebes e coisa e tal, comme d'habitude. Mas... Mas que eu esperasse só um pouquinho que ele logo me confirmaria a vinda ao ágape, ao regabofe, à churrascada, pô! Ou não.

E mais não disse, porque mais não lhe perguntei. Dois dias se foram. E hoje, sexta, antevéspera da festa, ele me liga. E eu vou ao celular. Ele diz que não. Que não viria à festa de formatura do meu neto.

- Fala, guri medonho... - disse-lhe eu.- Garanha, escutaqui... Talvez eu não possa passar por aí no domingo...
- Tá bom, qual é a desculpa da vez?
- Nada demais. É que, na segunda eu vou me operar.
- Quiéisso Guri, te deu nó nas tripas, água no joelho, assim de repente?
- Não. Besterinha: um câncer na próstata.
- Te explica, melhor, cara. Eu não entendendo nada de proctoculogia...
- Nem precisa. Deixa que eu te diga: apareceu um câncer nas reberbelas das interlas do meu esfíncter.
- Que bosta, cara. Isso lá é jeito de escapar de um domingo? A carne é boa, a alma é fraca, a bebida é fortíssima...
- Sei, sei, mas não é desculpa, não. Tô mesmo com câncer na próstata. Era pra ter me operado ontem, mas meu médico foi pros Estados Unidos e só volta manhã.
- Estados Unidos... Nessa hora?!?
- Fica frio, cara. O real tá mais forte que o dólar lá fora. A hora é esta...
- Uma porra que a hora é esta!.. Meu neto tá se formando. A banda de rock bem-comportado dele vai até tocar aqui no solar, neste domingo... E outra coisa, carinha, há 30 anos que eu faço massagem entre o escroto e as pregas nos meus banhos diários... E não tenho isso. E olha que eu não sou médico, amigão.
- Pois eu não fiz. Tô com o bicho-da-seda no buzafan.
- Tá, guri. Tá. ... Deixa eu te dizer uma coisa. Nem sei se quero mais que você venha ao churrasco aqui em casa, ou que o seu médico americanizado marque a cirurgia pra segunda-feira...
- Você decide... Mas brigado pela dúvida.
- Tá. Quero que você se opere na segunda, de manhã. À tarde estarei aí, no hospital. Vou pra marcar o churrasco de domingo da outra semana. Vamos comemorar os 10 ou 15% de temporada por esse mundão que nos espera.
- Combinado. Segunda-feira, à tarde, te aguardo por lá. No outro domingo, vamos encher o cu de carne e celebrar a vida bebendo estrelas com dom Pérrigón...
- Champanhe uma porra! O Chivas Reagal é por minha conta.

E, porque hoje é sábado e há a perspectiva de domingo, desliguei o celular. Vou ao churrasco de domingo, ao hospital na tarde de segunda-feira e à festa de entrega do diploma a meu neto nessa mesma segunda e, no domingo que vem, com o meu amigo, vou celebrar a vida de verdade.

MORAL DA HISTÓRIA - Câncer é uma coisa que contagia nessa República dos Calamares. Pega até os nossos amigos de infância. Mas não mata a identificação desinteressada e sincera de dois amigos que atravessaram a vida como se a prórpía vida soubesse envelhecer. 

30 de mar. de 2012

O desvio do pedágio

Por um bom tempo, transportei o progresso pelo Brasil afora. Foi meu ciclo de caminhoneiro independente. Ainda sinto saudade da sensação de olhar de cima o chão dessa terra. Da boléia de um Volvo de grande tonelagem, o buraco é mais embaixo. E o horizonte não fica assim tão colado ao céu e à estrada.

Há façanhas incontáveis para contar. Mais que incontáveis, impublicáveis. Por isso não as conto. Não conto todas. Uma lá que outra, até me animo.

E para não ir mais longe - que o Diesel está mais caro que o tempo, vou tirar da minha carga pesada, apenas um singelo encontro que tive, num trevo estratégico no interior do Paraná, bem à margem daquilo que se conhece como a "rota do contrabando".

Aquele lugar, ermo, despovoado de moradores e viajantes, é um desvio alternativo para quem gosta de escapar dos pedágios. Muita gente já descobriu isso. E os guardas rodoviários, também.

Pois, naquele dia dei de cara com uma dupla de patrulheiros. Simpáticos, fala macia, gestos firmes e controlados, eles me fizeram parar:

- Bom dia, tá boa a viagem?
- Até aqui, tudo bem, meu mestre.
- Seus documentos...
- Pois não.
- Tudo em ordem. Mas, por favor, agora acione o freio traseiro... Isso, assim mesmo.
- OK. Tudo bem?
- Infelizmente, não. A sua lanterna esquerda não tá funcionando...

Nem contestei. Eu não teria como provar o contrário. Impossível para um motorista apertar no freio e verificar se o pisca-pisca está respondendo. Vi que a dupla tinha lido meu pensamento. Sua fala trazia um sorriso tão frio quanto simpático:

- Vamos ter que multá-lo.
- Tá bom, quanto é?
- Ora deixe disso. Essas coisas acontecem. Vá assim mesmo até à primeira oficina e mande arrumar isso aí.
- Muito obrigado, seu guarda...
- De nada, mas só pra gente fortalecer a amizade deixe aí uma coisinha qualquer para o lanche ali do meu parceiro...

Cara pra fora da janela da cabine, meti a mão no porta-luva, puxei uma nota solitária de R$ 20 e coloquei-a no bolso da camisa cáqui do patrulheiro:

- Tá bem assim?

O propineiro fazendo-se de simpático, me retrucou em tom de meia aprovação:

- Amigo, se você acha que tá bom assim... Então tá.
- Não, seu guarda, eu não acho que tá bom assim, não.

E enfiei dois dedos rapidos no seu bolso e retirei de lá as minhas vinte pratas. Nem lhe dei tempo para mais nada. Fiz o câmbio, engatei a primeira marcha e fui saíndo devagarinho:

- Brigado, amigo. Tenho ainda muito chão pela frente.

Estupefato ele se desarmou. E me deixou ir em paz. Parei na primeira oficina. Pedi para o mecânico olhar minha sinaleira traseira. Pisei no freio, enquanto o atendente verificava o sinal:

- Tudo em ordem, parceiro. Tá funcionando legal.
- Brigadão, amigo. Vou adiante que ainda tenho muito chão pela frente.

RODAPÉ - Na vida de caminhoneiro nem sempre você é atropelado por um veículo. Há sempre o risco de não conseguir desviar de um entulho de propina, de pedágio, ou coisa parecida.

3 de mar. de 2012

A Canja

Então, na minha mais dolente pele do Garanhão de Pelotas, eu tinha meu sono reparador dos domingos passados em "minha pátria pequena que tenho no Sul" afrontado pontual e torturantemente, às seis horas da madrugada, pelo badalar insistente e penetrante dos sinos da catedral.

Que diabo, essas coisas feitas em nome de Deus! Sempre aos domingos. Logo às seis da manhã. Aqueles carrilhões desabavam domingueiramente sobre o meu cérebro e tonitruantes atingiam meus nervos. Inclusive aquele que entumecia ao sabor de belos e eróticos sonhos, no mais tradicional tesão de xixi de todos os frágeis e suscetíveis seres humanos. Bolas, o Garanhão de Pelotas também é gente!

E, como todo guerreiro precisa descansar. Minha terra, longe do mundo, era o meu paraíso dominical para relaxar e gozar. E aquele sino! E aqueles badalos! E eu nem sequer queria saber por quem os sinos dobravam, cacete!

Naquele domingo, o som abusivo e retumbante não deu treguas ao merecido descanso de mais uma semana de reportagens factuais e aflitas pelo conflito na Síria que reparti com  dois jornalistas franceses que trabalhavam em Homs.

Com muito esforço sobrehumano, sem nenhum aceno dos itamaratecas de lá ou de cá, consegui deixar o país e acompanhei - sem um arranhão sequer - os dois companheiros de batalha levando-os para o Líbano. Porra! Sem um arranhão sequer, porque jornalista tem mais é que fazer notícia; jamais tem que ser notícia!

De lá, William Daniels e Edith Bouvier, ferida em um ataque das forças de segurança que matou dois jornalistas, foram enviados para a região de Bekaa Valley, norte do Líbano, e retornaram à França. Eu nem cheguei a vir para o Brasil; vim direto para Pelotas que, eu já disse, é a "minha pátria pequena".

Pois então sucede que os sinos rimbombantes da catedral não me deixaram dormir sossegado. Foi a gota d'água. Aqueles padres não tinham um pingo de verdadeira noção comunitária. Acordei para sempre.

Decidi que meus domingos, a partir de então seriam relaxados e gozados na zona rural. De Pelotas é claro. Naquela já distante segunda-feira, atrasando meu retorno ao Oriente Médio, tratei de comprar uma chácara na Cascata - uma região linda de se viver!

Foi vapt-vupt. Comprei logo uma, com tudo que tinha direito: mansão, casa de capataz, tambo para ordenhar seis vacas, piscina... Veio até caseiro com família e filharada no negócio.

Viajei logo para o outro lado do mundo. Fiquei por lá duas exaustivas semanas. Cobri cinco batalhas, dois atentados a embaixadas americanas e francesas respectivamente e, afinal, me concedi outro final de semana, em minha nova casa rural.

Naquele velho sábado à noite cheguei exausto. Joguei tudo para um canto da enorme sala com cozinha americana e lareira, fui para a banheira Jacuzzi que já estava devidamente instalada como sugeri ao corretor do imóvel sob os olhares de minhas secretárias e me dediquei a relaxar e gozar, com minhas três namoradinhas, ex-guerrilheiras urbanas e grandes batalhadoras de minhas múltiplas alcovas.

Peguei no sono por volta das três e meia da madrugada. Grande madrugada. Sabe como é, quando a saudade bate, é fogo. Com ex-combatentes, nem se fala. E então e, até que enfim, joguei-as para os lados e me entreguei aos aconchegantes braços de Morfeu.

Às cinco da manhã meu cérebro explodiu: que tortura aquele barulho. Que inferno! Acordei com os sons tonitruantes e repetitivos que me pinicavam a alma e acabavam com o sonho. E não era coisa dos deuses... Saí pela manhã ainda noite como um sonâmbulo à cata de solução.

Ao meio-dia daquele almoço de domingo naquela paradisíaca chácara na Cascata, eu garanti para sempre os meus sonos reparadores de sábado em meu torrão natal. Tomei dois pratos fundos da substancial canja feita com o galo da madrugada.

Quando peguei meu helicóptero, rumo a Porto Alegre, de onde partiria para Cumbica rumo a Londres, eu já sabia por quem os sinos dobram.

RODAPÉ - Quando as forças do universo se juntam para atormentar seus melhores sonhos, não interessa por quem os sinos dobram... Agora, se o galo cantar, coloque-o na panela e faça com ele o que ele faz com as galinhas: coma-o!

27 de fev. de 2012

Baú do Jirau

Programa do Governo
(Esta saiu do Baú do Jirau - uma das alas do blog Sanatório da Notícia)
Segunda-feira, dia santo de guarda, na pele de um governista Garanhão de Pelotas, estava rente que nem pão quente, diante do rádio para meu encontro semanal e imperdível com o tradicional "Café com a Presidenta".

É o componente mais importante de um ritual que começa para mim invariavelmente com uma rápida navegada pelos jornais virtuais, "para colher a pauta do dia" extraída sempre da mídia pelo meu chefe no Ministério, cujo nome nem m passa pela cabeça, mas onde eu e ele ocupamos dois bons salários para não fazer nada.

É uma azáfama de inutilidade que se repete há bons nove anos, quase uma década, graças à minha carteirinha do PT que substituí por diplomas, currículos e aptidões para qualquer coisa, ou tipo de atividade.

O que não me passa pela cabeça - nem pense nisso! - não é o nome do meu chefe, isso eu tenho obrigação de saber; o que não me passa pela cabeça é o nome do Ministério.

Nunca ninguém me informou sobre esse pequeno detalhe e nem eu mesmo jamais me dei ao desplante de tamanha e tão impertinente curiosidade.

Depois da breve navegação, já de terno, colarinho branco com uma suspeita e rósea mancha de batom no colarinho, sinal da gandaia de sábado num já costumeiro coquetel para festejar a ascensão ou a queda de mais um ministro - eu nem me lembro bem, já que vodca me dá lapsos de memória - aprecatei-me para escutar o plano de poder semanal da momesca criatura, Dilma - A Primeira e Única.

Sim, plano. É que programa de governo mesmo, Dilma tem esse aí, de rádio e olhe lá!

Sorvendo o café que me foi posto em pratos limpos pela governanta do meu apartamento funcional na Asa Norte, aprumoei-me na confortável cadeira de espaldar alto, ao lado do aparelho radiotransmissor e inteirei-me do que deveria mandar meus subordinados mandarem seus inferiores fazer ao correr da semana.

Fiquei sabendo de tudo. Dilma falou, tá falado: O PAC desempacou; o Minha Casa Minha Vida é todo nosso; Luz para Todos já chegou e tem mais; O Brasil Sem Miséria existe e taí pra quem quer ver a vida com bons olhos; sim, Zé Dirceu e seus mensaleiros continuam soltos; Dilma hexa-campeã em perda de ministros caminha célere para a sétima, a oitava, a 15ª varredura de uma dessas heranças benditas que Lula lhe deixou.

Bom, pelo menos, o nome do meu querido ministro, o José da Silva, - todo governista terceirizado é José - não foi lembrado... Ainda.

Ah, sim, a presidenta está "consternada" com o incêndio na base brasileira da Antártica. Prometeu, inclusive, que vai mobilizar a Brahma e a Skol para retomar imediatamente as pesquisas. Não se pode desperdiçar gelo assim desse jeito... Água é vida!

Epa! Taí um bom título de projeto a ser lançado e terceirizado pelo "meu" Ministério. Projeto Água é Vida! Nunca antes na história desse país alguém pensou nisso. Pelo menos com esse nome - matutei, eufórico e cheio de pompa e circunstância, como nunca antes na minha história como Garanhão de Pelotas.

É por isso que eu não perco um "Café com a Presidenta". Sempre tiro alguma coisa que preste. Ela é bárbara! Tártara! Lança ideias e projetos assim ao léu, como se não estivesse dizendo e nem querendo nada.

E então, devidamente abastecido de notificações oficiais, Zé levantei-me, peguei os dois celulares, o cartão de crédito corporativo, assumi o comando de meu carro seminovo blindado e de chapa branca que por direito me cabe o uso e o fruto, ainda que modesto ocupante de um cargo em comissão de baixo es/calão dessa República dos Calamares, como são todos os chefes de gabinete ministerial. Acionei o controle remoto.

Pronto, o portão instransponível do prédio público que lm assegura a integridade física e moral de cada dia mal passado e cada noite bem dormida, abriu-se como uma porta de Sésamo para uma nova semana de sol radiante e de missões a cumprir.

Olhei meu Pateck Phillip (o rapa na Feira dos Importados sempre deixa um rescaldo para os aloprados mais atentos) que me ornava o pulso:

- Noossa! Quase 10 horas da manhã! Hoje a nossa presidenta se alongou demais no seu breakfast. Vou me atrasar para a reunião das 11 - pensei, sacudi a cabeça e saí cantando pneu pelo trânsito já descongestionado de Brasília.

Cheguei no meu gabinete. A secretária me informou que a reunião estava transferida para amanhã; bolas, o chefe estava gripado e acabara de cancelar todos os compromissos de hoje.

Cheio de mim, pela vacância eventual da chefia, tomeio os devidos ares de administrador-geral. Convocquei um rápido briefing com os 16 servidores terceirizados numa escala abaixo da minha e determinei, peremptoriamente, que ninguém tentasse criar qualquer novidade na rotina ministerial. Ninguém inventa nada, pô!

Todos deveriam esperar que o chefe se curasse da influenza com ares de pneumonia, ou coisa parecida. Que ficassem tranquilos, já que os primeiros diagnósticos do mal do chefe não tinham nada a ver com a epidemia de tumores incuráveis que grassa pela Esplanada e assola o nosso saudável governo.

E a segunda-feira correu normal. Às 11h30 saí para almoçar. Ás 15h eu já telefonava para os companheiros de terceirização combinando o happy hour de sempre, naquela mesma mesa, daquele mesmo bar-restaurante, onde a gente resolve os problemas da América Latina, da ONU e do mundo.

Do Brasil, claro que não se fala. Ninguém mais patriota que nós. Talvez, só o que desfralda essa bandeira como nome próprio. O Brasil para nós, não tem problema. Isso, a gente vai dizer amanhã, com todas as letras do novo acordo ortográfico para a mídia persecutória. A gente faz saber; saber fazer é besteira.

MORAL DA HISTÓRIA - Privatização, teu nome é terceirização.

25 de fev. de 2012

Pesadelo Classe Média Nacional

Acordei de uma noite em que era sócio do conglomerado Dirceu, Calocci & Consultores Republicanos Ltda. e, ainda sem despertar de verdade, tirei o pijama de R$ 38,90 que comprei outro dia no baratilho de um rescaldo das Lojas Pernambucanas por R$ 27,99 e entrei no box para tomar uma ducha num Corona, recém adquirido por R$ 32,30 em seis vezes no cartão, na Oba-Oba Miudezas Elétricas.

Levei cinco minutos exatos - que depois disso o medidor de energia dispara - enxuguei-me com uma toalha que surrupiei depois de um pernoite bem empernado de R$ 45 no Hotel Damasco Inn, ali nas bordas da Marginal do Rio Sujeira e escovei a terceira dentição com um resto do primeiro tubo de um conjunto de três dentifrícios Sorriso Branco e Franco que me custara exatos R$ 3,97 na promoção do dia nas Casas Bahia.

Cofiei os pelos pubianos - que um Garanhão tem que ter esses gestos - e fiz a barba com a quinta geração de uma lâmina amarela de um pacote de 10 unidades, adquirido no Carrefour por módicos R$ 6,35.

Matei no bar da esquina um café com leite, pão-dormido e manteiga, por suaves R$ 4,50, peguei meu possante carrinho Ford-KA completo, com um saldo pendurado de 52 prestações de R$ 622 e fui à luta.

Cheguei no escritório, uma sala de 24 metros quadrados e um vaso sanitário que me custam um aluguel de R$ 1.250, fora o condomínio e IPTU, água, luz e telefone e me prendi a fazer negócios pelo computador, um Intelbrás de 2009 financiado em 36 meses de R$ 33,50 que, felizmente, estará pago, morto e sepultado, no mês que vem.

Ao meio-dia, bateu agrura no meu estômago sensível e fui ao almoço-executivo no restaurante ali do shopping Mar de Fora. Paguei R$ 17 por quilo na balança, uma pechincha já que o custo real era de R$ 28,50 por cabeça, com direito a peixe tipo bacalhau já deslascado e tudo mais. Batata é que não faltava.

Dali fui ao médico oftalmologista. Um luxo, posto que não tenho plano de saúde, nem ligações de qualquer grau com o Sírio-Libanês e ainda acho que o SUS é para metalúrgicos de segunda e não para grandes miniempresários como eu. O prazer de dever para o Fisco só é comparável àquelas dores de dente insuportáveis.

Paguei na bucha, com cartão de crédito estourado - que vai me custar nada menos de 240% de juro por ano, até que o coloque em dia. Lá se foram R$ 200 por uma consulta que, em novembro do ano passado me custava R$ 150.

Saí enxergando a mesma coisa. Até que tenha grana para mandar aviar os óculos que já não cabem na minha velha armação redonda. A armação de R$ 190 está agora por R$ 287 à vista, ou R$ 320 no cartão, em três vezes. As lentes, Varilux ou coisa parecida, podem ser de R$ 95 para enxergar direitinho, ou então de R$ 480 para perceber o que me aparecer pela frente.

Nem voltei para o trabalho. Estava exausto. Na verdade, exaurido. Antes de chegar em casa, passei no supermercado. Sou viciado em sonhos de consumo. Namorei as prateleiras de vinho. Achei um Marquês de Riscal, meu cabernet espanhol preferido, em oferta: R$ 184 a garrafa. Peguei um Marquês de La Colina, por R$ 8,90.

Comprei pão integral, de barbada, por R$ 5,99 quando o seu valor verdadeiro seria coisa de R$ 7,20 mais ou menos. Aduzi às compras queijo-prato numa oferta de R$ 24 por quilo, quando o preço atual seria de, pelo menos, R$ 32; juntei ainda presunto gordo e sadio por inexplicáveis R$ 19 o quilo, ao invés dos tradicionais R$ 27. Queijo e presunto, aglomerados, resultaram-me num pacote de 200 gramas de sabor inigualável.

Ah sim, paguei R$ 4,80 num saco de um quilo de café Ouro Bendito que, normalmente, custaria R$ 8,90. Só vi que a validade do produto ia até apenas até o fim do mês quando cheguei ao doce aconchego de minha cozinha-americana. Saí de lá, paguei R$ 7 de estacionamento, uma barbada, posto que qualquer flanelinha cobraria de R$ 15 a R$ 20 para cuidar do meu KA completinho e sempre bem lavadinho.

Nem passei no bar daesquina. Pô, o cara tava cobrando R$ 12,50 por uma dose de Johnnie Red, sem choro. Preço de cabaré, cara! Por esse preço quero que a mulher do dono me leve pra casa. Fui direto para o meu lar, doce lar de solteiro convicto e compulsório. Casar com quem? De que sexo? Com que rabo, pô? Só pra daqui a dez, onze anos dizer que sou um barrigudo, careca, pai de filho?!? Melhor sofrer sozinho do que dever acompanhado.

Fiz um sanduíche que me custou por baixo, por baixo, uns R$ 3 pilas, tomei um café, fui para o banho rápido e sentei-me na cadeira de balanço com assento de palhinha que herdei de meu pai, velho e sério metalúrgico e, por isso mesmo, mal-sucedido que quase não morreu, coitado, porque não tinha onde cair morto.

Sintonizei o Jornal da TV. O noticiário político estava no quadro da polícia. A informação econômica do dia deu que o dólar caiu e a inflação oficial no Brasil é de 0,7%. Desliguei. Nem vi o Neymar botar a defesa do Corinthians na fila. Fui deitar.

Não dormi até agora. Já são seis horas da madrugada de um novo dia pelo horário brasileiro de inverno. Hora de enfrentar o trânsito na capital. Pelo menos não tive outro pesadelo - penso, antes de atirar o pijama no cesto de roupa suja.

MORAL DA HISTÓRIA - Se Luiz Erário da Silva escapar dessa luta em que está metido, em 2014 voto nele. Afinal, sou o Garanhão de Pelotas, como todo e qualquer brasileiro e, de vez em quando, ou sempre que é possível, até dá gosto ficar por baixo.

26 de jan. de 2012

Fairplay

Já que ninguém dizia isso, eu mesmo digo: fui um craque na modalidade futebol-da-bola-pequena. Jogava um bolão no futebol de salão. Rima, mas pode não ser verdade. Em todo caso, a minha paixão pelo esporte me dava o direito de ser magnânimo e de aceitar qualquer convite para jogar em times de segunda, de terceira e até de quinta categoria.

Jamais perdi um confronto entre casados e solteiros; nem deixei de fazer um pezinho naquelas peladas entre as equipes de rádios ou jornais e seus patrocinadores. Era um come bola. Um prostituto das quadras e ginásios. Na realidade, um apaixonado por qualquer tipo de futebol.

Naquela noite de sexta-feira, montamos o time lá da quadra sete do condomínio Las Figueras e fomos enfrentar um esquadrão do glorioso 9° Regimento de Infantaria, o Batalhão Tuiuti Futebol Clube. Na casa deles. Um ginásio bem construído e melhor conservado, como é do tamanho e feito das coisas do Exército. Afinal, quem tem mão de obra barata e diversificada como a dos recrutas, pode esbanjar serviço de limpeza e brilho. Até nos coturnos.

O jogo no primeiro tempo foi ótimo: 1x1. O nosso gol foi meu, claro. Na segunda fase faltou energia. Não, luz tinha de sobra; faltou energia para o nosso time. No meu bando de pernas-de-pau, eu corria por todos e todos não corriam por mim.

Quando vi, o placar era de 6x1 para os milicos. Louco para que o massacre chegasse ao fim pedi para bater uma falta na beira da área deles. Faltava talvez um minuto para terminar. Nos preparativos para a cobrança, levantei os olhos e dei com eles numa frase de puro fairplay e profundo espírito olímpico afixada no paredão dos fundos da quadra: "Lute, ainda falta um segundo"!

Corri para a bola. Passei por ela e... fui direto para o vestiário. Tomei meu banho, não falei com ninguém e nunca mais joguei no Las Figueras.

MORAL DA HISTÓRIA - Desgraçadamente eu sou um daqueles poucos que têm paixão por uma coisa sem querer tirar dela qualquer ensinamento. Desgraçada, ou felizmente.

19 de jan. de 2012

Alvíçaras! Posso ser um porre!

Porra, eu até já fui um bêbado! Abstêmio, jamais. Não tem sido raro que, pelos tropeções dessa vida, eu seja um porre.

Até quando desmancho castelos de areia; até quando piso na bola; até quando sempre sou um garanhão que não tem quando, nem pra quê, nem por quê, ainda que absolutamente limpo de pruridos morais e eventuais.

Saí de um affair - alvíçaras! alvíçaras! Affair é demais! - sem quê, nem pra quê, nem por quê... Saí, porra! E dei com os burros n'água. Dei, mas não confesso. Nem a pau. Porra, nem de porre!

Tanto é que, outro dia, mandei a bondade e a humildade que habitam meu coração à planfa que lamblanfa e postei um recado definitivo à breve amada que não consigo incorporar a minha alma inquieta.

Fui duro e definitivo. Mostrei àquela que me encanta, mas a quem não me rendo nem que me entregue a um demorado e doloroso auto-flagelo com um rebenque nas minhas costas prostradas num pelego que sou cativo de sua doce e instigante figura. Mandei-lhe um recado com todas as letras que cabem no meu empedernido coração:

- Eu te esqueço todos os dias!

MORAL DA HISTÓRIA - Todo mundo, até o Garanhão de Pelotas pode ser mau que nem um pica-pau. Ou endurecer-se, sin perder la ternura. E mais até: pra mim Platão é que sabia amar.

18 de jan. de 2012

Super Mouse

Sou um internauta de respeito. Todo dia, antes que o motorista do meu Hyundai Azera, cor de prata como a lua que expressa as minhas múltiplas personalidades, viajo pela internet como um desbravador de mares nunca dantes navegados.

Sou um misto de Cristóvão Colombo, garanhão pelotense,  perdido pelas belezas das índias, com Pedro Álvares Cabral, sonso e lusitano, tentando do alto de minha redundância, botar o ovo em pé.

No início da semana passada, já instalado no gabinete do imortal presidente da maior casa de tolerância nacional,  joguei-me às lides de lobista explícito, não me livrei da tentação e sentei-me à frente de um dos mais de dez exemplares de high generation computers que o Pai dos Marimbondos de Fogo tem, às custas do Erário*, em sua antessala acadêmico-presidencial.

Fundilhos presos à cadeira de belo espaldar, cerca de cinco imortais minutos depois, entrei em pânico. Mostrava-se-me teimosa a tela - tinha vida própria e linguajar apropriado - teimosa e absolutamente estática.

Não atendia a qualquer comando de minhas vontades, não sinais de submissão a qualquer mísero sinal do tal comundongo informatizado que o vulgo chama de mouse. Porra, até meus netos, dominam essa técnica de comunicação hodierna!

Tentei, tentei e retentei denodadamente na movimentação do pequeno artefato que nos liga com a vida e o mundo virtual. Nada. Porra nenhuma. Nem aquela porra que usei para acudir ao talento dos filhos de meus filhos, meus netos gênios nerds do inefável mundo da informática.

Levei mais de dez imortais minutos - essa porra da proximidade com um fardão, contagia inexoravelmente - na batalha contra aquela inusitada inércia do ratinho cibernético.

Levei e... Levei! Oba, o mouse reagiu. O mouse vibrou na palma da minha mão! Parecia que criava vida, saltitava e grunhia.

Foi só então que me dei conta de que estava manusenado há dez intermináveis minutos, nada mais e nada menos do que o celular ao invés do mouse.

Bosta! Que fiasco. Não atendi a chamada. Desliguei. Coloquei o celular no bolso da camisa de linho egípcio e me senti uma múmia.

Olhei para os lados, ri de mi  mesmo. Levantei-me e encerrei o expediente. Naquela manhã eu não tinha ânimo para mais nada, muito menos para uma puxada jornada de tráfico de influência.

RODAPÉ - (*) Erário, segundo nome próprio do Luiz que é também conhecido por Lula da Silva.

MORAL DA HISTÓRIA - Presta atenção na vida, cara! Com a atenção notamos as precisosidades e as colocamos em nosso acervo; com a distração deixamos cair ao solo o ouro e as pérolas como se fossem coisas triviais.

16 de jan. de 2012

Disfarçado de Motoqueiro

Tive meus dias de Palácio do Planalto. Nem mesmo o Garanhão de Pelotas é de ferro. Como assessor de projetos especiais da Secretaria de Comunicação daquele presidente baixinho que gostava mais do "cheirinho de cavalo do que do cheiro do povo", meus momentos de happy hour eram repartidos pelos bares dos arredores da Esplanada com o pessoal da segurança palaciana

Antes que eles tomassem o terceiro chope - hora em que se calavam para sempre sobre qualquer assunto palaciano - os arapongas até que eram bem divertidos. Contavam uma em cima da outra; poucas e boas

O Perninha Torta era um número. Boquirroto, não perdia a chance para dar bola fora. Essa do cheiro do cavalo foi uma. Estragou toda o esquema de marketing que preparavam para popularizar sua imagem.

Outra catilinária foi a daquela manhã de sábado, quando uma criança de uma escola pública da cidade-satélite de Taguatinga lhe perguntou, diante das câmeras de TV e dos microfones dos repórteres setoristas do Palácio, o que ele faria se ganhasse salário mínimo. "Metia uma bala na cabeça" - respondeu de imediato, com um sorriso, enquanto afagava o rosto da inocente criaturinha.

Dentre muitas historietas, saíam sempre algumas inconfidências de aventuras furtivas do espevitado presidente. Era um fincão de primeira. Sempre que podia, dava uma escapada para pular a cerca.

Era cuidadoso. Toda vez que saía para encontrar uma determinada e dadivosa dama da Corte, vestia-se de motoqueiro, dos pés à cabeça; macacões adequados, luvas, botas e o indefectível capacete que o protegia não só de eventuais quedas de sua pontente máquina de duas rodas, como resguardava a sua identidade.

Era assim que se livrava da curiosidade da mídia, sequiosa por deslizes presidenciais.

Nessas escapadelas de alcova, o homem cometia pecados que levavam os guarda-costas à loucura: bolas, a moto era a única no Brasil naquele tempo com 750 cilindradas; toda verde e amarela, era um espanto; ele era patrulhado, pelo percurso inteiro, por um comboio de dois Gálaxies LTD Landau presidenciais na frente e dois atrás; o fujão arrancava dos fundos do Palácio a 150 km/h rumo ao mesmo sítio, na região dos Lagos; assim que chegava ao jardim da residência dos furtivos encontros, ele descia da moto, caminhava resoluto com suas pernas arqueadas de cavaleiro republicano, rumo aos braços e abraços de mais um momento de lazer clandestino, com a cara e a coragem... De capacete embaixo do braço!

MORAL DA HISTÓRIA - A pompa e a circunstância de um disfarce oficial não esconde a fantasia de um presidente bom de cama. E, em casos de alcova, nenhum disfarce é usado para esconder aquilo que se deseja que os outros saibam.

14 de jan. de 2012

Vingança não tem fim...

Osvaldinho Langlois, mesmo quando comemorou cinquenta anos de fundação, nunca deixou de ser um guri arteiro. Foi craque de bola. Extrema esquerda por vocação. No futebol, porque na política não dava de bico e nem se colocava.

Uma postura - epa! postura é de galinha - um comportamento meio incompreensível para quem levava a vida na brincadeira. Não há nada neste planeta mais cômico e nem mais moleque do que política.

Osvaldinho tem sempre uma piada, uma tirada de humor inteligente e afiado para qualquer situação. A gente tem que tomar cuidado com ele, se não quiser pagar um mico na frente dos outros. Ou atrás - como decerto ele emendaria rápido e rasteiro.

Eu reencontrei Osvaldinho, numa tarde de verão** na praia do Laranjal, às margens da Lagoa dos Patos, a maior do mundo, desempenhando o papel de dono do cofre da padaria do Shopping Mar de Dentro. Depois da troca de flâmulas pelo tempo decorrido - coisa de três anos - desde o nosso último encontro, eu lhe fiz o pedido como cliente da casa, cheia de clientes:

- Vou levar oito cacetinhos*, um tablete de manteiga, uma Coca-Família e 10 copinhos de água mineral com gás...
- Ah, sim, Garanhão. Você quer que embrulhe, ou vai comer aqui mesmo?

A clientela riu do meu ar de surpresa. Quando mostrava ter entendido a pequena molecagem, teve tempo de me ouvir tentando sair da saia justa, fingindo que não ouvira o cutucão:

- Osvaldinho, por favor, eu vou levar também 20 dessas empadinhas.
- Ah, sim, pois não, Garanhão. Elas estão ótimas - disse solícito, com ar de vencedor
- Ótimas? Você já as provou?
- Claro, provei, estão uma beleza, Garanhão.
- Então suspende o pedido. Não como nada babujado! Não como resto de ninguém.

Paguei a conta sob os risos da mesma freguesia. Na manhã seguinte, domingo de folga para os padeiros, fomos jogar uma pelada entre casados e solteiros, no gramado praiano do Caiçara F.C. – o estádio "Comendador Mário Franco".

Osvaldinho me encheu de passes tipo rosbife - todos mal passados - só para mostrar para a turma que não jogo mais nada. Sua vingança foi malígna.

RODAPÉ - (*) - Cacetinho - Em Pelotas, pão francês é "cacetinho". Pelotense adora levá-los para casa. Tanto o francês, quanto o cacetinho.
(**) - Tarde de Verão - Lá por Pelotas, quando há mesmo uma tarde de verão, ela cai num sábado.

MORAL DA HISTÓRIA - Não é possível a ninguém vingar-se de uma molecagem sem cometer outra e mais uma e mais outra...

13 de jan. de 2012

O Reencontro

Fui à festa de arromba do casamento da filha de um velho companheiro de bancos escolares. O cenário escolhido foi um sítio do tamanho de uma estância, entre Canela e Gramado. Um festão.

Tinha gente que não acabava mais. Alguns velhos conhecidos, outros nem tanto e muitos absolutamente nunca vistos ou por mim imaginados.

Dentre os convivas, vislumbrei uma verdadeira lenda viva. Um colega de ginasial. Daqueles que entram na escola bem depois que a gente já capitulou às vontades da mãe e às ordens do pai. Ialtamiro, o bom e batuta Ialtamiro, pelas minhas contas, já beirava os 80 anos de idade.

Cheguei-me ao longevo amigo a quem não via fazia muito e muitos anos. Algumas décadas, na verdade. Dei-lhe um forte e caloroso abraço. Ele, diplomaticamente, correspondeu. Abraçou-me como se ainda soubesse com quem estava falando:

- Que prazer ver você novamente!
- Que alegria - respondi ao vetusto enganador.
- De que cidade você veio aqui pro casamento? - pesquisou-me, querendo caçar minha identidade.
- Vim de Pelotas, Ialtamiro.
- Ah, sim, de Pelotas... Eu gosto muito daquela cidade. Estudei lá.
- Eu sei...
- A última vez que estive lá, faz tempo, foi pro casamento de um grande amigo, o Garanhão de Pelotas.
- Pois eu também estava lá.
- Você foi ao casamento do Garanhão?
- Fui, Ialtamiro... Eu era o noivo.
- Garanhão, meu amigão!!! Por Deus Nosso Senhor, eu jamais te reconheceria...
- Entendo. Faz muito tempo...
- Não, não. É que você tá gordo, careca e parece mais velho que eu.

Fingi que não ouvi. Abracei-o com afeto e o acompanhei até à mesa de doces, bem perto do bolo. Providenciei-lhe uma taça de guaraná e fui rever outros antigos parceiros.

MORAL DA HISTÓRIA - Depois de quase uma década de décadas, a memória é um espécie de paraíso de onde fomos desterrados. Ainda mais quando alguém se chama Ialtamiro.

12 de jan. de 2012

Punguista

Dona Mariana era para mim o que Dilma é para Luiz Erário Lula da Silva, uma governanta. A diferença é que ela era uma boa governanta. Ela cuidava de minha residência no Lago Sul com enorme eficiência. Não dormia no emprego.

Todo santo dia, ia e vinha para cumprir suas obrigações. Na minha e na sua casa. Naquela quarta-feira, cerca de cinco da tarde, dona Mariana tomou - como de hábito - o coletivo para a cidade-satélite de Samambaia.

O ônibus estava quase lotado. Achou um lugar vago ao lado de um passageiro de feições rudes. Acomodou-se sem dizer e nem receber palavra. No trajeto do Plano Piloto para a região do Entorno o carro foi ficando lotado.

Com o vaivém do ônibus, volta e meia dona Mariana levava um cutucão do parceiro de viagem. O cara era meio incômodo, meio atrevido. Dona Mariana se defendia como podia. Não queria fazer escândalos, muito menos alardear um assédio sexual. Foi aguentando.

Lá pelas tantas, desperta da modorra, ela quis saber as horas, olhou para o pulso e - surpresa! - seu relógio tinha desaparecido. Desaforo!

Não teve dúvidas, abriu cuidadosa e lentamente a bolsa, tirou uma tesoura de unha e, moto contínuo, de mão trocada para que ninguém notasse, encostou com firmeza a ponta do pequeno e agora perigoso artefato nas costelas do safardana. Entredentes bafejou no ouvido do punguista:

- Passa o relógio. Vamos, passa o relógio!

O homem tomado de medo diante da iminência de um barraco e uma reação imprevisível, entregou o relógio em silêncio e sem reclamar. Na primeira parada ele desceu, calado, cara fechada e sem olhar pra trás.

Dona Mariana, enfim, chegou ao seu destino. Desceu, entrou em casa e foi conferir a bolsa. Lá estava o relógio. Mas - porra! - não era o dela. Era um relógio de homem. Do homem que ela ameaçara. Um bom relógio, melhor que o dela.

Dona Mariana quase morreu de vergonha quando, ao colocar sua bolsa em cima da mesa da sala, deu de cara com o seu próprio relógio. O relógio que ela esquecera de colocar no pulso antes de sair pela manhã para fazer faxina na minha casa no Lago Sul.

MORAL DA HISTÓRIA - O medo e a desconfiança são os mais injustos e cruéis conselheiros das pessoas de bem.

11 de jan. de 2012

A Vida no Toque-Toque

Até um Garanhão como eu pode ter sua porção hipocondríaca. Pois, durante bom espaço dos meus anos, eu fui um daqueles adoecidos sisudos, de ar preocupado. Um hipocondríaco daqueles convictos, quase malucos de tão líquidos e certos.

Por isso mesmo eu era portador de uma doentia e incurável desconfiança nos diagnósticos médicos. Sempre comprovava o resultado de um consulta. Procurava pelo menos mais dois especialistas sobre os meus sintomas da vez.

Urologistas, nunca foram menos de três; clínicos gerais, de dois a quatro por qualquer indisposição; otorrinos, eram menos, só dois; neuros, endocrinos, psiquiatras se quedaram perdidos em minhas contas.

Quando me senti quarentão, desconfiei da próstata. Fui com a cara, a coragem e com tudo para o tão difamado exame de toque. Fui. E sei-lá, senti uma coisa assim diferente que me fez procurar logo outro proctologista, mesmo sem saber o resultado da primeira grande prova da farinha.

Logo lá estava eu, deixando-me imolar pelo esfíncter uma vez mais. E sem que me desse conta, cinco dias depois, eu sentia o dedo da melhor pesquisa anatômica fazendo furor no que havia de mais profundo à flor de minha pele.

Assim é que, com o maior prazer de um desconfiado, fui acumulando comprovações de laudos e mais laudos. Dali em diante, passei a perambular de mão em mão, a andar de dedo em dedo atrás da comprovação dos diagnósticos. Minha vida virou um inimaginável toque e toque.

Andar na ponta dos dedos para mim virou rotina. Gasto uma grana com tanto teste, mas levo numa boa, afinal a saúde assim me custa caro, mas compensa. Como compensa!
Tá bom, eu sei, o meu caminhar já não é o mesmo, mas a minha felicidade tem uma saúde de ferro. Outra coisa: tudo não passou disso mesmo. Um dedo por vez já tá mais que bom para essa moléstia de fundo telúrico.

MORAL DA HISTÓRIA - Para um garanhão hipocondríaco, a vida só vale a perna ser vivida quando ela é profundamente saudável.

10 de jan. de 2012

Justiça na Forma da Lei

Para não ficar em casa cofiando os pelos pubianos da minha gata loira naquela manhã de domingo, fui participar da Maratona Anticorrupção, movimento apartidário que se realizava pelo Eixão Monumental, em Brasília.

Antes que começasse a passeata/caminhada - maratona era demais para tanto cidadão de bem cívico, tão mal de forma física - um político teve a ousadia de se imiscuir no rol das pessoas. Foi alijado aos gritos e resmungos de "Fora, Agnelo! Vai te juntar com a tua turma".

Iniciada a caminhada-correria, fixei-me na performance de um cadeirante. Jovem, forte, espadaúdo, ele chegou à frente de pelo menos metade dos corredores convencionais.

O cadeirante foi para o pódio imaginário especial. A maioria dos participantes foi para o pronto-atendimento médico montado à margem da pista pelos organizadores da maratona de calças-curtas e largos sonhos de democracia.

Esperei que o atleta paraplégico recuperasse o fôlego e fui falar com ele. Conversa daqui, conversa dali fiquei sabendo que se tratava de um ex-policial "ferido no estrito cumprimento do dever". Ele foi serenamente didático ao me contar o incidente:

- Levei dois tiros nas costas durante um assalto ao ônibus que me levava pra casa.
- Você enfrentou os assaltantes?
- Negativo. Eles eram quatro. Manjaram que eu era "tira" e me executaram.
- Eles foram presos?
- Positivo, os quatro.
- Continuam presos?
- Negativo. Os meliantes morreram.
- Morreram? Simples, assim. Morreram?
- Positivo, morreram de tiro. Os malfeitores intentaram fugar do cativeiro...
- Uma fuga em massa?
- Negativo. A cada semana um deles encontrava a porta da sua cela aberta.

MORAL DA HISTÓRIA - Entre bandidos e mocinhos, vingança também é um prato que se come frio. Ou, o corporativismo continua sendo a mais forte e eficiente forma da sociedade fazer justiça.

9 de jan. de 2012

Estoques

Resolvi ser empresário da noite. Tinha tantos escrúpulos quanto esses ministros de Estado que perdem o emprego porque não perdem tempo na hora de recolher propina.

Nunca tive pruridos pecaminosos. Tinha uma alma sem jaça. Depois de vários anos tentando os melhores negócios dos melhores ramos, cheguei à conclusão absolutamente definitiva que business is business.

Poucos dias depois que muitos já me conheciam como investidor noturno, em plena sessão vespertina de uma casa de sauna finlandesa, um parceiro do tipo que se mete na vida de todo mundo, resolveu querer saber mais a respeito das futricas que corriam a respeito de minhas recentes iniciativas notívagas.

Com ares de entendido e de grande representante das forças vivas da sociedade local, o especulador deu às suas sondagens um grave tom de sugestão:

- Ouvi dizer que o melhor negócio pra quem investe na vida noturna é montar um restaurante ou um bordel...

Falou assim como quem deplorava a simples idéia de um cidadão de bom nível social ter a ousadia de explorar a putaria. Olhava-me como quem não adimitia sequer sonhar que alguém como eu, seu antigo companheiro de colégio e futebol, pudesse encarar a vida de um cafetão. Foi por isso mesmo que lhe respondi com prazeroso desdém pela sua moral e bons costumes:

- Pois, eu montei os dois.
- Ah, os dois... E por que um restaurante e um bordel?
- É que em caso de falência, eu posso comer o estoque.

MORAL DA HISTÓRIA – Um empresário da noite prevenido vale por dois e fala de boca cheia.

8 de jan. de 2012

Dedução Lógica

Eu era chefe de segurança do Palácio do Planalto. Cumpria à risca as minhas obrigações. Isso não queria dizer, de forma nenhuma, que era obrigado a gostar do presidente  da República, por acaso Luiz Erário Lula da Silva.

Naquela manhã de meio rebuliço pelo estouro do escândalo do mensalão, diante da porta do elevador que leva ao terceiro andar, onde fica o gabinete presidencial, um dos seus vinte guarda-costas comentou que Lula reclamara em bardos retumbantes que tinha levado "uma facada pelas costas".

Minha alma de segurança atento e esperto deslindou logo o dilema:

- Facada pelas costas... É por isso que ele não sabe quem foi.

O elevador chegou. O presidente, acompanhado de seu motorista, dois agentes federais e um tal de Zé Dirceu, subia direto da garagem para o gabinete. Começava mais um dia de intenso trabalho pelo bem dos brasileiros e felicidade geral da nação. Luiz Erário dava mostras de que não sabia mesmo de nada.

MORAL DA HISTÓRIA - Aquele que suprime a traição no exercício de um governo, jamais terá poder algum.

7 de jan. de 2012

INTOLERÂNCIA

Aquele cara era um chato. Toda vez que me encontrava pelas quebradas da cidade, me pegava pra peteca e queria discutir futebol.
Só porque, naquele lugar do passado, eu trabalhava como cronista esportivo de um dos jornais da minha patriazinha lá no Sul, ele achava que eu não fazia outras coisas na vida.

Eu estava naqueles dias. Meio menstruado da cabeça. Sem paciência fui me remoendo à medida em que, no meio da roda de aposentados e malandros em torno de nós, ele rebatia tudo que eu dizia a respeito do Brasil e do Pelotas, os dois maiores adversários do campeonato gaúcho, afora a tão desprezível quanto imbatível dupla Gre-Nal.
Sei lá que besteirada ele disse. Só sei que era mais uma. Perdi a paciência. E vituperei pra cima dele:

- Você é um descalcificado!

Foi a gota d’água. Ele escancarou um riso irônico e não perdeu a oportunidade de me corrigir uma vez mais na frente dos outros:

- Descalcificado?!?
- É descalcificado, sim!
- Tá, deu pra ti. Não vou discutir mais. Tu é uma toupeira, Garanhão... Não é descalcificado. Tu quis dizer desclassificado. Des-clas-si-fi-ca-do!
- Toupeira é quem chama. Tu é descalcificado, sim! Tua mulher te mete guampa há anos e até hoje não nasceu chifre nessa tua cabeça!

A roda se desfez na mesma hora. Ele nunca mais veio me encher o saco, quando me encontrava pelas ruas de Pelotas, por mais sozinho que andasse e mais quisesse bater papo com alguém.

MORAL DA HISTÓRIA – Ainda que todo o progresso esteja baseado na paciência, toda a sociedade se revela na intolerância.

6 de jan. de 2012

O Perneta

Já disse e vou repetir: comer a mulher dos outros e não contar nada pra ninguém é a mesma coisa que fazer um gol de bicicleta num estádio vazio. Pois qualquer garanhão – e não seria eu quem estragaria essa tradição – trepa, mais para se vangloriar do que para provar a si mesmo que tem tesão e é bom de cama.
Pois estávamos eu e um velho parceiro de mesas de bar falando dessas coisas, quando ele empurrou com a mão direita a sua tulipa de chope para os arredores da minha e pousou a mão esquerda sobre meu braço, num movimento típico de quem quer fazer uma confidência.
Olhou para os lados, como quem procurasse uma dessas assombrações que, à miúde, saem dos sanitários dos restaurantes e, baixando a voz fez de meu ouvido esquerdo um pequeno estande, uma espécie de cubículo igual aqueles confessionários de igrejas católicas a dar com um pau:
- Garanhão, ando comendo a Marininha...
- A mulher do Milton Capenga?
- Shhh... Ela. Ela mesma.
- E daí, cara, qual é o problema?
- Daí que ele anda pra lá de desconfiado. Tenho medo que numa dessas, ele me pegue em flagrante.
- Grande coisa. O cara é manco. Ele é perneta, você sai correndo...
- E se ele for atleta paraolímpico?!?
MORAL DA HISTÓRIA – Se um lancezinho patife desses tem moral é aquela batida verdade popular: Quem tem... Tem medo.