23 de dez. de 2011

A um passo da eternidade

E então, certa feita - não dista isso muito tempo - estava eu à margem direita do arroio Pelotas, na antiga Colônia de Férias Mazza, junto à ponte que leva ao balneário do Laranjal, às frondes de uma centenária figueira ao lado da casa onde morou e conspirou Bernardino Rodrigues Barcellos, quando fiquei sabendo por Ricardo Ramos - senhor de engenho e arte daquele recanto - como é que nasce, cresce e se eterniza uma daquelas maravilhas verdes profundas que dão muita sombra e poucos figos, porque surgem para dar beleza às cenas da natureza.

Aquelas figueiras nascem do cocô do passarinho que se rebusca nos frutos do butiazeiro. O desforço da diminuta ave cai sobre o solo fértil, junto ao pé de butiá e o tempo se encarrega de dar cria às portentosas árvores que emolduram os Pampas e os caminhos da pátria pequena que tenho no Sul.

A descoberta me deu uma pequena visão do que pode ser um princípio da ideia de eternidade. Quando me cansar dessa vida e pular e andar muito mais do que pulo e ando para este mundo, eu quero ser cremado.

Que me desfaçam em pó, mas que não me desperdicem assim ao léu. Quero que liberem minhas cinzas, não ao vento, menos ainda ao Minuano. Quero que me joguem a um mar, a um rio, a um arroio, a um viveiro - pouco importa, desde que seja em Pelotas e tenha camarão.

Um deles há de me provar. E me parir de novo. E então estarei de volta à terra dos homens de todas as vontades. Com a mesma coisa que tenho hoje na cabeça. E vai ser bom uma vez mais. E o seu Garanhão de Pelotas será eterno.

MORAL DA HISTÓRIA - Todo ateu, porque não consegue provar que Deus não existe, tem seu dia de crédulo e fica a um passo da eternidade.

22 de dez. de 2011

Eia, pois!

Eia, pois! O Garanhão de Pelotas, duas semanas de férias depois, é aquela que renasce das cinzas, que ressurge das brumas. Qual Fênix, como disse o faraó Beherensdorf há dois mil anos. O Garanhão é aquele que tenta esquecer todos os dias a sua paixão mais fresca. Mais fresca, no bom sentido. Mais recente. Mais profunda. Mais dorida pela descontinuidade. Pela despedida que não houve. Pelo adeus que não aconteceu. Pela perspectiva de que amanhã é outro dia. Outro começo de tudo quanto nem bem começou, já muito mal nem terminou. Pela saudade hoje do que será o amanhã. Pelos medos de não saber trilhar o chão que lhe faltou.

2 de dez. de 2011

NEURO MORDAZ

Fernando Costa sempre foi meu neurologista. Meu e de todo o Cone Sul. Seu idioma clínico é e sempre foi de uma precisão suiça e de uma frieza patagônica. Nunca fez rodeios. Disse sempre na lata o que o paciente tinha. De bom ou de ruim.

Eu era seu parceiro de aventuras esportivas pelas quadras do Dunas Clube. Quadras de tênis e de pádel, já que de futebol ele não manjava nada. Era mais perna de pau do que cadeira dura em modalidades de raquete.

O melhor de todos os certames era sempre a rodada de uísque e acepipes de depois. As melhores jogadas eram as que ninguém tinha visto e as histórias eram todas verdadeiras, disfarçadas de mentira.

Fernando não se continha. Um dia notei marcas vermelhas nos meus braços. Onde eu batia com a raquete, ou onde quer que eu levasse uma pancada, logo ficava uma nódoa feia que persistia por meia dúzia de dias para depois sumir como que por encanto.

Eu quis saber de Fernado o que era aquilo:

- Fernando o que é isso aqui.
- Nada, Garanhão. Isso é bobagem.

Quinze, vinte dias depois. De novo as manchas apareceram. Voltei à carga:

- Fernando, e essas manchas?
- Nada, Garanhão, nada... Não dá bola pra isso.
- Para com isso. Diz logo do que se trata..
- Bem, já que você quer saber, isso é... Púrpura senil.
- Púrpura... Púrpura senil?!?
- É, só dá em quem tem mais de sessenta anos.

Bem feito. Quem me mandou ser curioso. Curioso e medroso. Eu achava que poderia ser aquilo que Lula tem hoje na garganta, ou coisa que o valha. Não era. Ora, púrpura senil eu tirava de letra.

E Fernando Costa, meu neurologista meio pisquiatra, analista e parceiro de jornadas clubísticas, era bem assim. Sua linguagem clínica era um estilete; tinha a precisão de um bisturi.

De outra feita, eu andei fazendo um regime de matar. Não deixava de comer nada do que eu gostava. Mas contava calorias. Não absorvia mais do que 900 por dia. Emagreci uns 12 ou 13 quilos.

Numa dessas saídas de quadra, gelinhos tilintando em copos atopetados de Chivas Regal, Fernando - vingativo como ele só e brabo porque havia perdido mais uma partida para mim, olhou-me e com a mordacidade que tirava dos confins da Patagônia, me disse entredentes:

- Todos os meus amigos que emagreceram desse jeito, foi sempre por duas únicas razões...
- Duas razões?
- É. Estavam com câncer ou arrumaram uma amante.

Calei-me. Fingi que me preocupava com uísque em minhas mãos, quando ele - com olhos de freguês de caderno - não me perdoou:

- Garanhão, você... Eu garanto, não tem câncer.

MORAL DA HISTÓRIA - As coisas que ouvimos quando as provocamos são sempre mais verossímeis do que as que escutamos antes de nos irritarmos.

27 de nov. de 2011

RELATÓRIO DO MINISTRO GARANHÃO

Eu era ministro do Trabalho do primeiro governo de uma primeira mulher eleita presidenta do Brasil.  Eu era bom ministro. O ministério é que era uma porcaria tão grande que, quando meus pensamentos voavam pelo meu gabinete, sobressaía a minha porção mosca-varejeira.

Eu me sentia muito bem no meio daquele monturo cercado de políticos e consultores, porque sabia que podia cometer malfeitos a torto e direito. Afinal, eu sabia que no fundo, no fundo, todos eles eram bons. Ruim mesmo é quando eles vêm à tona.

Então eu dava risada sempre que me pegavam no contrapé, toda vez que me acusavam de alguma falcatrua, que diziam que eu levava uma propina para liberar a abertura de um sindicato ou coisa que o valha. Eu morria de rir, porque eu sempre tinha alguém em quem botar a culpa.

E corria o tempo, célere rumo às festas de Natal e Novo Ano. A primeira-mulher-presidenta, a quem eu amo de paixão, pressionada por uma cascata de acusações que fez meia dúzia deles rolar por águas abaixo que nem bosta na correnteza, me mandou uma mensagem urgente, meio curta, meio grossa, como é de seu feitio: "Quero amanhã mesmo o seu relatório sobre a minha mesa"!

Achei que ela também gostava de mim. Mais que achar, eu tinha certeza. Não a fiz esperar. Mandei o relatório por escrito, carimbado em papel timbrado e assinado. Não carecia de sigilo. Não tenho, nem nunca tive segredos pra ninguém.

Meu relatório também foi meio curto e meio grosso, como é de meu feitio: "Sua mesa é de madeira de lei, rococó reformada, tem quatro pernas, duas gavetas e tampo muito bonito".

MORAL DA HISTÓRIA - É prudente em coisas do governo que nos domina que quando os erros podem ser remediados, que se os remedie; e quando não, que sejamos dissimulados.

19 de nov. de 2011

ASSOCIAÇÃO DE IMAGEM

Quando eu não havia completado ainda 200 anos de idade, tinha um neto, esperto e bonito como são todos os netos de todos os avós do mundo. Mais que isso, ele era inteligente. Isso sempre faz a diferença.

Naquela manhã de férias do Jardim de Infância, ele saía de casa, acompanhado por seu pai, para dar um voltinha no parque da cidade, andar de balanço, gangorra, traçar um sorvetão, um algodão doce, pipoca e essas coisinhas que os pais sempre provam antes de dar a metade que sobra para os filhos.

Estavam no umbral da porta, quando bem à frente de meu neto de cinco anos, passa pela calçada, rente à parede da casa, um anãozinho, de cabelinho penteado, bem arrumadinho, de andar lépido e faceiro.

O pequeno transeunte não estava nem a um metro de distância, quando meu neto - encantado pela inusitada imagem do nanico - sugeriu na hora ao meu genro:

- Pai, me leva ao circo?!?

O anão estancou a caminhada. Voltou-se como se fosse dar um tabefe no guri atrevido. Viu que não era nada disso. Deu meia volta e se mandou. Lépido, mas já nem tão faceiro assim.

MORAL DA HISTÓRIA - Quando o sonho se reflete na realidade, não há razão para conflito. Mas que a gente perde o rebolado, perde.

16 de nov. de 2011

COMIA, SIM

Eu também fui guri medonho, daqueles de esperar a saída dos colégios das freiras e dar piadinhas sensuais e provocativas para a virgenzinhas da cidade.

Um dia, eu estava com a minha turma numa das calçadas estreitas, pela qual as moçoilas tinham que passar depois de mais um dia estafante de aula.

Eu mais que sozinho, estava mal acompanhado por Peteleco, um colega de ginásio que, como eu metera uma gazeta, só para ver a fauna escolar passar.

E lá vinham duas delas. Pelo jeito, capricornianas ou piscianas, virgens é que não tinham mais jeito de ser.Uma aparentava ser um pouco mais experiente que a outra. E eu querendo me exibir mais do que precisava, segredei para o parceiro ao lado:

- Essa é feia. Eu não comia nem que ela me pagasse.
- Qual delas, a de cá ou a de lá?
- A quem vem pela beirada da calçada.
 - Pô, Garanhão, essa é minha irmã.
- Não, não, a de lá, a veterana.
- Pois essa é a minha mãe...
- Ah é, então eu comia. Comia sim!

MORAL DA HISTÓRIA – Com excesso de confiança e sem dobrar a língua você acaba não comendo, nem agradando ninguém.

BEDEUZINHO

Joguei futebol muito tempo. Não é para me gabar, mas fui craque do Brasil, do Pelotas, do Farroupilha, do Bancário, do Paulista, do Estrela, do Huracán, do Santa Fé, do Danúbio, do Ponte Preta, do Liverpool às vezes, Racing, da Portuguesa do Patê, do Naoli, do Santa Tecla, do Arranca-Toco. Fui um prostituto de camisetas esportivas.
Só não joguei pelo Fiateci, porque ele já havia fechado as portas e nem no Cometa, dos irmãos Caveira porque eu gostava de ganhar deles. Lá jogavam o Rato, o Diabinho, o Jorginho Spilmann, o Carioquinha, todos bons de bola. Não tem graça ganhar de quem não sabe nada.

Um dos grandes craques com quem tive o prazer de jogar foi Bedeuzinho, grande craque da velha Boca do Lobo. Mas ele já não anda mais por aí.

Quando abandonou a carreira profissional, Bedeuzinho permaneceu pelas cercanias do time da Avenida, como se fosse uma peça do s móveis e utensílios, um patrimônio do clube.

Era uma figura fácil e carimbada nas redondezas áureo-cerúleas. Tinha sempre histórias pra contar. A vida lhe foi ingrata. Saiu dos gramados com a família meios desmanchada, as finanças meio abaladas, na verdade, sem um tostão no bolso.

Nem com tudo que passou, seu espírito perdeu a ginga nem a malandragem que só os vestiários do futebol ensinam. Era um anedotário ambulante. Protagonizava a maioria das façanhas que contava e inventava. Tinha presença de espírito e tiradas incríveis; não perdia uma...

Esta que conto agora, eu vi de perto. Paulo de Souza Lobo – o Galego era o treinador do Pelotas que fazia, naquela temporada, uma campanha sofrível no Gauchão. Certo sábado, o time jogaria à tarde em Novo Hamburgo, contra o Floriano, time do goleiro Periquito – uma muralha.

A comitiva estava entrando no ônibus, com Galego organizando o embarque. Os atletas se encaminhavam, em fila indiana, para seus lugares. Bedeuzinho – que já era carta fora do baralho – furou a fila e foi se infiltrando. Galego deu-lhe um basta. Colocou-lhe a mão no peito e preveniu:

- Peraí, Bedeu, primeiro entram os que jogam.
- Ah é?!? Então desce todo mundo! – indignou-se Bedeuzinho.

Eu quis saber do que se tratava:

- O que é que houve Bedeuzinho?
- O home aí disse que só entra quem joga...
- Tá certo, ele, Bedeu.
- Tá nada. Ali só tem cabeça-de-bagre. Se é por jogar bola mesmo, então eu vou sozinho nesse ônibus.

E há muitas outras. Uma delas foi comigo mesmo. Ele ainda tentava manter no caminhar certa fidalguia de Zumbi dos Palmares.

E botava banca sempre que podia. Eu entrava naquela tarde de muitos anos que já se foram na sala da diretoria do Pelotas para uma reunião negocial. Dei de cara com Bedeuzinho, todo engravatado como gostava de andar, ainda que de colarinho branco amarrotado e poído e, de passagem já fui logo, em voz alta, simulando que o provocava:

- Bedeu, você não jogava nada.
- E você, Garanhão, nunca vai ser treinador de futebol!

Ele era assim mesmo. Tinha raciocínio rápido e agudo como era seu jogo. O recado espirituoso, fingidamente irado que me atirou de volta foi claro: um cara que não reconhecia seu futebol, não poderia mesmo entender nada de bola. O sorriso vitorioso em seu semblante quase feliz me valeu o dia. Era como se Bedeuzinho tivesse marcado mais um de seus gols de placa.
Bedeuzinho continuava sabendo driblar a vida como poucos são capazes de fazer nos lances mais retrancados desse duro campeonato que é a existência.

MORAL DA HISTÓRIA – Aquele que muda quando perdeu a sorte e a fortuna, mostra que não as havia merecido.

13 de nov. de 2011

O PULO DO GATO

E então, de repente, não mais que de repente, a mídia - sempre a mídia - descobre que o patrimônio de Agnelo Queiroz, perfeito substituto de Zé Arruda no governo do Distrito Federal, subiu 413% em quatro anos. De R$ 224.350 declarados à Receita em 2006 seus ganhos foram para R$ 1.150.322 em 2010.

Isso só pode ser intriga da oposição. Vai ver, ele apenas se esqueceu de contar ao Leão do governo que aprendeu com o nanico João Alves, de triste memória, a acertar uma vez por ano nas Loterias da Caixa. Ainda tem muito sorteio pela frente.

Mas esta patacoada só vem parar aqui, porque demonstra que a vida é uma piada pronta. E como o Garanhão de Pelotas perde o amigo mas não perde a piada, eu tenho frouxos de riso quando vejo na política casos tão antigos e hilários quanto as mais velhas conversas moles para boi dormir.

Naquelas priscas eras eu era um colono matuto lá do interior das pradarias do Rio Grande. Tinha coisa de vinte e poucos anos e trabalhava com meus pais e minha penca de irmãos na nossa pequena lavoura de arroz, ali pelas bordas do Taím.

Trabalho duro, de sol a sol, a semana inteira. Menos sábado e domingo, folga que a gente já começava a curtir nas noites de sextas-feiras pelos bolichos da campanha.

Eu era bem comportado. Bebia e comia menos do que namorava. Preferia carne tenra, in natura. Pois então, eu tinha uma namoradinha, bonita pra burro. Uma colonazinha que nem eu. E a gente namorava na sala, sentadinhos no sofá de palhinha colonial.

Os avanços já iam bem adiantados entre nós. A gente já se bolinava há mais de seis meses. Sempre ali na sala e, na hora da saída, no portão, onde as suas bochechas ficavam mais vermelhas e seus recôndidos mais bem humorados. Humor aquoso, é claro. Minhas glandulas inferiores ficavam a ponto de estourar.

Naquela sexta, coisa de nove horas da noite, ela tirava meu saltitante artefato de prazer para fora da braguilha quando, de inopino e impertinente, entra na sala o bagual inconveniente e inxerido do seu pai. Um gauchão de faca na bota, bigodes que parecim um rebenque horizontal sobre as ventas fumegantes...

Nem precisava ser daquele tamanho. Bastava aquela carantonha para matar qualquer um de susto. Vi que ele vira tudo. Seus olhos até me pareceram meio gulosos com relação à minha intimidade exposta. Coisa de gaúcho, sei lá. Mas, a bem da verdade, o que senti mesmo no seu emblante foi o ar de decepção diante da quebra da confiança que ele depositara em nós.

Nãolhe dei tempo algum. Dei curso, isto sim, à única desculpa que me veio à cabeça.

Levantei-me de repente e, no meu pulo do gato, atravessando a sala rumo à patente lá fora, com o instrumento viril e erecto na mão, me dirigi ao sogrão mal encarado:

- Bueno, vou dar uma mijadinha...

E diante de sua estupefação, com um sorriso amarelo aproveitei para alongar a constrangedora e ocasional conversa:

- E talvez inté faça um cocozinho.

O que a desculpa esfarrapada e imoral produziu naquele ambiente, nem quero lembrar. O que importa agora é que o pulo do gato cabe hoje como uma luva na mão de Agnelo Queiroz, flagrado numa brutal quebra da confiança dos seus eleitores.

O sucessor de Arruda dos Panetones é bem capaz de, a exemplo dos R$ 5 mil que lhe foram devolvidos pelo lobista laboratorial, pode muito bem imitar a cena deste seu Garanhão aqui e sair de fininho abandonando o governo, como eu abandonei pra sempre a namoradinha bonita pra burro.

Só falta agora Agnelo se levantar da cadeira no gabinete do governo e dar o pulo do gato na direção dos seus eleitores:

- Bueno, vou devolver os premios das loterias pra Caixa... E talvez inté lhes empreste algum do que tá sobrando.

MORAL DA HISTÓRIA - Nem sempre as necessidades fisiológicas são satisfeitas com  fezes e urina. Podem, no entanto e invariavelmente, ser feitas de imoralidade e sem-vergonhice.

11 de nov. de 2011

FIM DE CASO

Àquelas alturas eu estava convencido: eu era um tarado. Estou falando de coisas de alcova. E já vou pelo atalho para que a gente não se perca com mais delongas nesse caminho tortuoso.
Cheguei ao Solar Branco, um bordel decadente dos Anos-60, época em que a meninada fazia no colégio e atrás das portas o que levaria anos a fio para aprender nas pensões até que virassem mulheres de vida fácil.

Era coisa de 10 horas de uma noite de inverno, cheguei de gabardine tipo Jean Gabin, gola levantada cobrindo metade da cara, chapéu de aba encostada na testa, um Colúmbia com filtro no canto da boca, com pose de Humphrey Bogart.

Varri com os olhos o salão habitado por uma falange de meia dúzia de marafonas desencantadas pela espera da clientela que não aparecia para dar movimento à casa de prostituição que um dia fora um sucesso de arromba.
As prostiputas não me deram a mínima atenção. Olharam e continuaram como estavam. Uma fumando uma piteira, ao mais puro estilo Marlene Dietrich; outra estirada no sofá esfarrapado, como se fosse a Cleóptara que ela vira no cinema da esquina.

A loirinha mais bonitinha daquela legião de desesperanças levantou-se e, quando pensei que se encaminharia para mim, deu meia volta e foi para a sala dos fundos, onde ficavam a cozinha e a patente.
Patente, se você não sabe é, para os contemporâneos deste seu Garanhão de Pelotas, o quarto de banho, o popular WC.

Uma delas, mais expedita, foi à eletrola Telefunken e botou um long play do Glenn Miller. Os acordes de Mooonlight Serenade povoaram o salão. O resto era silêncio e fumacê.
Uma gorducha bonitona, de olhos esgarçados e boca tão proeminente quanto seu ventre usado e abusado pela corrida do tempo e das batalhas de lençóis, aproximou-se com um sorriso simpático e pretensamente encantador:

- Paga uma Cuba, bem?
- Eu sou tarado! - Grunhi em sua direção.
- Tá bom, mas tu me paga um cocrete também?
- Eu sou tarado! Se valer a pena, eu pago a Cuba, o croquete e o michê...

Ela olhou para as outras. Nenhuma delas mostrou qualquer interesse. A gordinha quis saber mais. E já, em tom de consentimento, foi se chegando:
- E qual é a tua tara?

Calei-me, tirei a mão do bolso, livrei uma baforada brutal de fumaça e, apagando o cigarro no cinzeiro que estava na mesinha rococó ao lado do corrimão da escada que levava aos cômodos de sacanagem, abri um lado da minha capa e mostrei-lhe um relho, um rebenque desses de dar chicotada nos burros de carga.

Seus olhos ficaram maiores. E mais brilhantes. Sorriu sem mostrar os dentes. E me provocou:
- E o quê mais?...
- Mais um pelego de ovelha. Que, se é que tu topas, eu vou buscar ali fora na minha charrete...

Ela topou. Eu fui e voltei. Logo subimos, sob o olhar petrificado das outras gurias sem-vergonhas.

Pois fomos. E foi tudo muito bem. E muito bom. Deitei-a no pelego, enchi seu lordo de relhaços, mordi, usei, abusei, entrei aqui e ali, sempre com muita chicotada e muito prazer.
Antes que a madrugada desse lugar ao dia, eu paguei a Bertolina - esse era o nome da gordinha safada - uma Cuba, dois croquetes e deixei em cima do bidê uma nota de dez contos de réis.

Essa façanha se repetiu por mais de um ano. Sempre às sextas-feiras, das 10 da noite às quatro, cinco da madrugada. Eu a deitava sobre o pelego e a enchia de relhaços que deixavam marcas que subiam das nádegas até as espaldas graúdas e brancas.

Era uma felicidade só. Era bom para os dois. Eu já tinha me acostumado as suas banhas. Bertolina tinha tanto pneu na cintura que, quando ela suava, eu achava que aquilo poderia ser um viveiro de mosquitos da dengue. Mas era bom assim. E correu o tempo assim, bem assim.
Naquela outra longínqua sexta-feira eu não estava lá essas coisas. Cheguei ao Solar Branco já com o relho e o pelego embaixo do braço e subi com Bertolina para o quarto.

Ela se preparou toda para o ritual de sempre. Deitou-se no pelego e esperou as chibatadas. Eu a penetrei direto. Não bati. Fui fundo. Fui e voltei. Fui e voltei. Fui e brochei... Bertolina se encanzinou:
- Quiéisso, meu taradão. Cadê o relho?!?
- Não tô a fim de dar relhaço...
- Ah, não. Eu quero relho. Me bate, me bate!
- Não. Não vou te bater hoje. Nem hoje e nem nunca mais. Chega. Cheeega!

E logo me apressei a tirá-la do pelego e colocá-la na cama. Em seguida, me preparei para voltar à carga ligeira. Ela conformada, me aceitou assim mesmo. Sem pancada, sem pelego e sem rebenque.
No meio do ato, olhei seus olhos. Grossas lágrimas escorriam pelo seu rosto. Manchavam de cima abaixo aquela sua cara larga. A curiosidade e até certo sentimento de dó e piedade me fizeram fracassar outra vez. Saí de dentro dela. Virei-me de lado. Peguei um cigarro no bidê e me dediquei então a Bertolina outra vez:

- O que é isso, guria, tá chorando por quê?!?

Seu choro era quase convulsivo. Eram lágrimas verdadeiras. Choro assim de quem está apaixonado. Não conseguia falar direito. Soluçava.
- Fala guria, que choro é esse?

Ela se aconchegou, abraçou-me com ternura e quase implorando, me disse a razão de sua tristeza:

- Snif, snif... Tu desprezou o pelego!... Snif, snif... Tu não quer mais me bater... Snif, snif... Tu brochou, tu brochou!
E aí desandou no choro:

- Ahhhh, tu não gosta mais de mim!

E foi assim que, com os erros do seu português ruim, acabou o encanto. Deixei de ser tarado naquele dia. Foi o jeito que encontrei para acabar com aquele caso que já estava ficando sério demais, já tinha virado uma paixão mal-resolvida. Nunca mais vi Bertolina na minha vida. O pelego e o rebenque ainda estão lá no porão de casa. Hoje, eu já não sou mais tarado. Virei sado-masoquista.

MORAL DA HISTÓRIA – Todas as paixões exageram alguma coisa e são paixões justamente porque exageram. (Chamfort)

A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO

Pois eu era, naqueles tempo bicudos, diretor de teatro. Bolas, o Garanhão de Pelotas já fez e já foi de tudo um pouco na vida. Diretor de teatro, sim. Teatro dos Bancários. Meu passaporte para transitar pelos camarins daqueles vocacionados artistas amadores era o balcão de Contas Correntes do Banco Agrícola e Mercantil, hoje falecido.

José Luiz Mendonça, o Joca, meu colega de datilografia na missão cotidiana de "fechar" o livro Diário, protagonizava uma adaptação da história "A Volta do Filho Pródigo". Quem fazia o filho pródigo não interessa, o importante é que Joca Mendonça desempenhava o papel de pai do filho.

O amador que bancava o filho que volta pra casa era meio tapadão. Tinha dificuldade para decorar textos, relembrar falas, inventar "cacos". Joca, não. Era bom de decoreba, de interpretação, de impostação de voz, de mise en scène.

O primeiro ato terminava com a volta do filho pródigo, uma entrada intempestiva em cena que surpreendia o pai, de pijama, sentado numa poltrona da sala, lendo um jornal. O diálogo era rápido e rasteiro. A primeira fala era uma exclamação do pai, supreendido pelo retorno inesperado. Coisa fácil para fechar o ato e cerrar as cortinas do espetáculo.

Teatro 7 de Abril lotado, silêncio da platéia atenta e o destrambelhado filho abre com estardalhaço a porta, sacudindo o cenário que quase fez desabar a rotunda. Desastrado antecipa-se ao pai, trocando as bolas e as falas. Mete a cara em cena e, com pose de grande ator, brada para o pai:

- O que vem você fazer aqui?

O cara roubou a fala do Joca. A platéia leva um susto, ri e, diante do amor ao teatro, fica na expectativa do que iria acontecer a partir dali. Silêncio, de novo. Joca, num rasgo de seu enorme talento, levanta-se, vai com ar de real indignação ao encontro do ator desastrado e conserta tudo, com presença de espírito e vasta capacidade de improvisação:

- Eu é que te pergunto, filho ingrato! O quê vem você fazer aqui?!?

E, sem complacência, coloca as duas mãos nos ombros do filho pródigo e o expulsa de cena. Bate a porta na cara dele. Volta para a poltrona, pega o jornal e finge que o lê, enquanto o pano cai.

MORAL DA HISTÓRIA - Filho que nasce pródigo, mesmo quando volta para casa continua perdulário. É capaz de jogar fora até mesmo uma peça de teatro.

9 de nov. de 2011

1ª DEGUSTAÇÃO VERTICAL DO MUNDO DE JOHNNIE WALKER


Foi uma coisa nunca vista. O bom gourmet e melhor degustador de maltes puros, Luiz Carlos Gerth Dias abriu, no Iate Clube de Brasília, em petit comitée, a sua seleção completa de Johnnie Walker.

Formamos uma falange de fígados blindados de oito amigos para a primeira Degustação Vertical da história mundial da família que nasceu na Escócia, cresceu no condado de Ayrshire para procriar-se  em 130 milhões de garrafas anuais pelo planeta afora.

A regra era simples: começando pela embalagem mais jovem, nós oito degustávamos tantas doses quantas pretendessemos de cada garrafa daquela legião de sabor público e notório; a cada 30 minutos, um mini despertador implacável determinava a abertura solene de mais um exemplar, sempre seguindo a cronolgia etária daquelas divindades.

Soubemos no dia seguinte que todos havíamos sobrevivido. Há imagens comprobatórias, posto que as fotos não mentem, jamais. Voltamos à realidade humana sem um pingo de dor de cabeça. Good whiskey is known the next day.

2 de nov. de 2011

NEM SEMPRE A VOZ DO POVO...

Pois eu, nesses tempos que correm desempenho o papel de consultor da República para assuntos de saúde, previdência e política. Não faço nada. Só observo e consulto. Se sou consultor da República, sou republicano; se republicano, ninguém é mais petista do que eu.

Justo é, pois, que me concentre no que se passa com meu presidente de honra, hoje atropelado por um câncer na garganta. Fico, no entanto, na periferia da coisa. Mais para fila do SUS do que para corredor do Sírio-Libanês.

Fiquei ciente, a horas tantas, de tudo que aconteceu na visitinha de médico que Dilma fez ao paciente Lula. E atento, por igual, ao que decorreu do breve encontro em que, aquele que não desencarna aproveitou para fazer uma pequena chantagem emocional: pedir para Dilma ser sua interlocutora junto a Marta, dizendo-lhe que desista de ser prefeita paulistana e deixe a mamata para Hadad, o Estapafúrdio.

Não deu outra. Dilma, a presidenta, foi diligenta. E aqui entrei eu, o Garanhão consultor que, a conveniente distância observei o chá das cinco entre as duas madames brasileiras e republicanas.

A primeira-mulher-presidenta Dilma, ao pedir a Marta para abandonar a disputa pela candidatura petista à prefeitura de São Paulo atendeu, na realidade, a duas vantagens pessoais: 1ª) agradou ao combalido Lula; 2ª) tentou acelerar a saída de Fernando Hadad do MEC, o que não acerta um Enem na vida. O diálogo entre elas foi rápido e esclarecedor:

- Marta, você disputa?
- Digo!

Pronto. Missão cumprida. E ainda mal-resolvida. Lula continua apreensivo e sem voz ativa nesse caso.

MORAL DA HISTÓRIA - Nem sempre a voz do povo soa como a voz de Deus.

26 de out. de 2011

PESADELO

Essa faculdade de ter múltiplas personalidades que eu trouxe ao mundo quando vim à luz, me dá direito e licença de cultivar os mais estranhos companheiros. E contra isso não luto, porque afinal se me dou mal aqui, logo me dou bem ali. É que eu sou meio Pagodinho e deixo a vida me levar..

Outro dia eu trocava umas boas idéias sabe com quem? Sabe, não? Pois é, com ele mesmo. Ninguém mais nem menos que meu amigo, meu irmão, meu líder, o Seu Encarnado, aquele que não desencarna.

E entre mais umas e mais outras, acabei com a língua solta e lhe confidenciei que não tinha dormido bem à noite. Ele pronto quis saber:

- Teve azia?
- Quê nada, mermão, tive um pesadelo.
- Ora, pesadelo todo mundo tem, Garanhão.
- Mas eu sonhei que era você...
- Como assim, pesadelo?
- Se avexe, não. Era um baile lá na Venezuela, na casa de Hugo Chávez...
- Ah bom, aí já tá ficando feio.
- Pior, só tinha uma dama com quem ninguém dançava...
- Se não é quem eu tô pensando, pelo menos você se deu bem...
- Bem, o cacete! Era a Marta...
- Nããão... Era nela mesma que eu tava pensando – mentiu meu amigo, irmão e líder.
- E ela me tirou pra dançar!

Ao silêncio que se seguiu se juntaram muitas umas que outras. Já alta madrugada, nos despedimos. Estávamos cambaleantes de sono. Juro, eu tinha bebido para esquecer. Nessa eu dancei.

MORAL DA HISTÓRIA – Se estivesse perto quando Homero escreveu na Ilíada que “os sonhos vêm de Deus”, eu lhe diria na hora “vá pro diabo que o carregue”!

25 de out. de 2011

FAZENDO GREVE

Pois quem é daqui dessa terra se lembra bem, o país estava nos estertores do governo Jango, bem do jeito que a Última Hora estava às vésperas de virar um pirão sem sal na mão dos donos do que já era o tablóide Zero Hora. Eu era repórter da sucursal que ficava ali, bem pertinho de algumas fronteiras com o Uruguai.

Dali era um pulo passar para o lado de lá, onde se esbaldavam os tupamaros. Dois pulos. A gente podia escolher como entrar: indo por Jaguarão, ou por Santa Vitória, pela reta do Taím, paraíso ecológico nunca respeitado. Sarará era o inquieto fotógrafo daquela pequena casa de notícias de Samuel Wainer, no extremo Sul, às beiradas castelhanas.

Era uma segunda-feira fria de agosto, mês de enchentes. Bom para mandar notícias pelo teletipo, ou pelo maldito telefone que falava para o mundo, mas cochichava para Porto Alegre, ainda cidade-sede da Última Hora gaúcha.

Mais da metade daquela primeira manhã da semana e nem um pingo de chuva. Nem de chuva nem de novidade. Eu levava um cafezinho escaldante à boca, feito na espiriteira da agência, quando Sarará dá um salto na cadeira, vai à janela do edifício, tira-me a xícara da mão, bebe o meu café e diz com um sorriso sacana na cara branca e franca:

- Eu mereço. Tenho notícia! Você quer notícia?
- Merece... É, se tem notícia, merece mesmo.
- Peraí, só um pouquinho...

Se mandou para o telefone. Pediu para a central da CTMR - Companhia Telefônica Melhoramentos e Resistência, de Pelotas, fazer uma ligação para Pedro Osório:

- Por favor, dona, me liga aí com a Estação Ferroviária de Pedro Osório... É. Pedro Osório, Cerrito, Olimpo... É tudo a mesma coisa, o rio Piratini é que separa uma vila da outra, dona... E então deu um número para a telefoinista.

Sarará esperou coisa de meio minuto, não mais, com o fone na orelha, enquanto já preparava os apetrechos de fotografia.

Operou-se então um verdadeiro milagre de agilidade, posto que naqueles tempos uma ligação interurbana poderia levar horas e, não raro, um dia ou dois.  Logo retomou o contato:

- Brigadinho, moça... Alô, alô é da Estação Ferroviária?!? O presidente do Sindicato dos ferroviários taí? Posso falar com ele? Brigadinho...

E, enquanto aguardava impaciente e com medo que caísse a ligação, ainda me pegou pra peteca:

- Garanhão, me faz outro cafezinho que a notícia vem aí. Aquele seu tava gostoso...
E logo voltou ao fone:
- Oi, Pedrão! Aqui é do Sindicato de Porto Alegre! Vocês já entraram em greve aí?!?

Fui obrigado a deixar o café na espiriteira a querosene e me aprochegar do maluco:

- Cara, o que é que você tá fazendo?...
- Psiu, fale baixo...

Interrompeu-se para orientar o "companheiro" sindicalista lá do outro lado da linha:

- Que bosta, meu chapa! Aqui, na Grande Porto Alegre nós já deflagramos a greve. Tá tudo parado aqui, Viamão, São Leopoldo, Novo Hamburgo, desde as cinco da madrugada! Hein?... Não, não. Nós só vamos descruzar os braços se nos derem aumento e melhores condições de trabalho!

Falou curto, grosso e cheio de convicção. Bateu o telefone. E pronto ligou de novo para a CTMR:

- Oi, moça, sou eu de novo. A senhora quer me ligar agora com Porto Alegre? Sim, por favor, é urgente! Brigadinho.

Ele estava estourando de sorte para telefonemas naquela manhã. Não cheguei nem a saber direito o que ele estava fazendo, quando o telefone tilintou. Açanhado, Sarará atendeu:

- Alô. É da sede Central do Sindicato dos Ferroviários?... Oi, companheiro, quem tá falando aí?

Eu não acreditava no que estava vendo e ouvindo. Entreguei a alma ao diabo. Sarará, completou o plano:

- E aí, companheiro. Aqui é do Sindicato de Pedro Osório! É. Vocês já paralisaram? Estão em greve? O que é isso, companheiro?!? Que bosta, meu chapa! Aqui, na Zona Sul nós já deflagramos a greve.

Deu uma breve parada, meteu um gole de café pra dentro, enquanto ouvia qualquer coisa do lado de lá. Retomou a enrolação em seguida:

- Tá tudo parado aqui, Pedro Osório, Cerrito, Olimpo, Pelotas, Rio Grande,.. Hein?... É, desde as cinco da madrugada! Hein?... Não, não. Nós só vamos descruzar os braços se nos derem aumento e melhores condições de trabalho! Tá bom, brigadinho. Boa greve, companheiro!

Desligou. Pegou suas mochilas de fotografia e ainda me deu uma chamada:

- O que é que cê tá fazendo parado aí, com essa cara de bundão? Vamos pra Pedro Osório, cobrir a nossa área de greve. Vambora, Garanhão, vamo!

Você pode não acrediutar, mas no meio do caminho, ele parou o DKW do jornal, foi até um poste desligou um tareco qualquer naquela caixa telefonica chei de fios de tudo quanto é cor e feitio. As ligações com a capital ficaram mais difíceis e demoradas do que de costume.

No dia seguinte, a greve dos ferroviários era uma realidade. Um sucesso de mobilização. A Última Hora furou todo mundo. Não havia um trem se mexendo sobre os trilhos... Era tudo dormente no Rio Grande do Sul. Os outros jornais - Correio do Povo, Diário de Notícias, Folha da Tarde - comeram barriga.

Só começaram, a dar notícia no segundo dia da paralisação. O movimento durou a semana toda. Parece que não deu em nada.

Mas me deu trabalho. Tive que mandar boletim atrás de boletim para a matriz da Última Hora. Sarará ganhou um prêmio pela série de fotografias do movimento grevista. E eu, a obrigação de fazer cafezinho pra ele até a outra segunda-feira.

MORAL DA HISTÓRIA - Nessa horas em que o Garanhão perdia o caráter ele não levava em conta que uma reportagem pudesse se parecer com um livro mal feito, um livro de páginas escritas em laudas corridas e muito às pressas. Tá bom, confesso, hoje esse velho Garanhão de redações não poderia - sem uma pontinha de cinismo - reclamar contra a eterna campanha do PT a favor da censura à liberdade de imprensa.

24 de out. de 2011

PANDILHA DE SEVANDIJAS

Juliné da Costa Siqueira, pai do meu amigo e ghostwriter para muitas ah/venturas e redator do livro O Garanhão de Pelotas, em que sou o principal, uno e indivisível protagonista, era uma astuta Raposa dos Tribunais do Júri. Já falei dele em outros capítulos. Ele daria, mais que um livro, uma coleção completa.

Era mais uma sessão do Júri. Corria o julgamento nos salões da Biblioteca Pública de Pelotas. O caso era escabroso para a época, meados dos Anos-50, e absolutamente corriqueiro e banal como qualquer escândalo ministerial de hoje: dois tarados tinham estuprado e matado uma menina de nove anos de idade. O crime convulsionou a cidade.

Juliné era advogado dos pais da vítima. O júri era presidido por um juiz que o velho raposão detestava pela arrogância, pelos maneirismos, pela soberba, pela empáfia, pela prolixidade e pelo pernoicismo. Não, não se engane, não era nenhum ministro desses que hoje são emoldurados nos programas da TV Justiça. Era só um prenúncio pedante do que seriam esses magistrados ungidos pela Presidência da República.

O criminalista meio lenda-viva das barras dos tribunais daquela região tinha como companheiro de defesa um jovem e promissor advogado, recém saído dos cueiros da faculdade, este seu Garanhão de Pelotas.

A casa da Justiça estava cheia, lotada de assistentes de todas as camadas da sociedade: jornalistas, radialistas, acadêmicos de direito, figuras populares, representantes das forças-vivas da comunidade...

A sessão do júri corria normal e os defensores dos réus já tinham falado. Chegou a hora da Defesa. Logo depois da saudação inicial, sob a expectativa silenciosa de todos, Juliné abriu sua peça de oratória com uma solene e instigante provocação ao juiz presidente da sessão:

- Infelizmente, as togas da Magistratura escondem uma pandilha de sevandijas...

Não se ouvia uma mosca voando. O juiz bateu com o martelo e interrompeu o discurso:

- Modere seu linguajar. Esta presidência não aceitará ofensas...
- Ofensas, Meritíssimo?!? Que ofensas? A Magistratura esconde sim, uma pandilha de sevandijas!
- Isso é uma ofensa! - retrucou o juiz, sem mostrar muita segurança quanto ao significado daquilo.
- Vossa Excelência sabe, por acaso, o que é uma pandilha de sevandijas?
- Vou cassar sua palavra! - desconversou o magistrado.
- Vossa Excelência teria todo o direito, desde que me explicasse porque se julga ofendido, e por que acha que não faz parte dessa pandilha de sevandijas.
- Não tenho que lhe explicar nada...

A esta altura a platéia inquieta, já percebera que o juiz não sabia o que significavam aquelas palavras que tomara como chulas e ofensivas. O juiz notou que os presentes já o olhavam como se fosse um despreparado, um burro, dirigindo um julgamento.

- Não me admiraria, Meritíssimo que mesmo sem saber o que é uma pandilha de sevandijas, Vossa Excelência arrepiasse a lei e me silenciasse.
- Se Vossa Excelência insistir nesses termos, será cassado e convidado a se retirar desta sala.

Eu também sem saber o que queria dizer aquilo, cutucava meu parceiro e sussurrava:

- Ei, Juliné, o que é pandilha de sevandijas? Por que você não pára de implicar com o juiz?
- Ora, meu caro Garanhão de Pelotas, pandilha de sevandijas é pandilha de sevandijas. E não paro porque não gosto desse bodoso...

Esse nosso breve e susssurrante diálogo foi interrompido por mais uma ordem do juiz que pediu silêncio aos circunstantes e autorizou o raposão implicante a prosseguir:

- Continue em outros termos, ou Vossa Excelência será obrigado a se retirar do recinto.
- Obrigado, Excelência... Infelizmente, as togas da Magistratura escondem uma pandilha de sevandijas...

Foi o que deu. A paciência do magistrado esgotou. Ele decidiu. E, usando sua prerrogativa de dono da lei e da ordem naquele momento, ordenou a saída do advogado do processo e do salão do julgamento. Juliné levantou-se e foi acompanhado por mim até à porta de saída do tribunal.

Juliné, de braço dado comigo, ainda tinha um brilho de satisfação nos olhos que refletiam a admiração da platéia que chegou a ensaiar uma salva de palmas para ele e uma vaia para a confessada ignorância do juiz, mas conteve-se pelo som das tradicionais batidas de martelo e da voz tonitruante do eminente presidente da já tumultuada sessão:

- Silêncio, Silêncio no recinto! Ou mando evacuar a sala!

Nem um pio. Silêncio sepulcral. Quase... O pessoal, já com jeito de torcida à espera de um gol, escutou a rápida conversa entre nós dois:

- Pronto, Juliné, sei que você conseguiu o queria...
- E o que é que eu queria, Garanhão?
- Fazer o juiz passar por burro na frente dessa gente toda.
- E Fiz - sorriu glorificado, olhando para o mundaréu de gente que se aproximavam, quase pedindo autógrafos, afagando-o com olhares e expressões de parceria.

- Tá bem, tá bem, mas agora me diga, por favor, o que é pandilha de sevandijas? É insulto, é elogio?
- Ora bolas, meu bom Garanhão, pandilha de sevandijas é exatamente tudo o que esse juizinho bobo está pensando. Grupo de safados, aproveitadores, gangue fuleira, sanguessugas...
- Mas, então...
- Então, ele não sabe disso. É um burro. E todo mundo aqui ficou sabendo disso.
- Ora...
- Vai lá e acaba com ele, Garanhão.

O julgamento dos dois assassinos estupradores durou pouco. Foram condenados por sete a zero. Pegaram 30 anos de cadeia, cada um. No outro dia, os jornais deram o resultado do julgamento num rodapé. A manchete falava de outra coisa: Juiz não sabe o que é pandilha de sevandijas.

RODAPÉ - Juizes despreparados condenam o que não entendem.Todo aquele que julga sobre dúvida, precisa estar isento de ira ou de misericórdia.

23 de out. de 2011

DE CALÇAS NA MÃO

Era pouco menos de 1982. O Tribunal Eleitoral nem tinha reconhecido ainda a ficha de filiação número um do PT, assinada por Apolonio de Carvalho, quando essa des/ventura me aconteceu.

Já disse e repito: de vez em quando eu não passo de uma pessoa normal. À miúde, sou um simples brasileiro, nada a ver com sarneys, dirceus, lulas, paloccis e demais blindados.

Falo nessa fundação do PT porque ele, logo mais adiante de especializou no produto que aparece no meio da pequena história. Por enquanto, vamos apenas voltar juntos aos Anos 80.

Sei, sei vou parecer um pavão, mas como Garanhão de Pelotas, não posso deixar de exaltar meus próprios feitos. Os piores deles, nem chegam aos pés dos “malfeitos” do Brasil de hoje. Em todo caso, são casos.

Sempre fui um irrecuperável boêmio, chegava em casa altas horas da madrugada. Trôpego e cambaleante, no mais possível silêncio para não acordar minha mulher de então.

Depois de mais uma gandaia, cheguei em casa naquele meio de madrugada. Luzes apagadas, fui tirando cuidadosamente as calças para enfiar-me primeiro no pijama e depois na cama.

A Operação Silêncio - não são só os Intocáveis da PF que botam título nas suas manobras - estava quase terminada quando, para meu azar, um monte de moedas caiu de um dos meus bolsos estrepitosamente no chão do quarto.

Rosa Linda – a terna dona do meu lar, doce lar da época - acordou-se em sobressalto e, vendo este seu maridão naquela situação, perguntou-me ainda sonoleta, tomada de surpresa:

- Garanhão! Cadê sua cueca???
- Hein, cueca?... Pô, me roubaram a cueca!

O casamento nunca mais foi o mesmo. Como jamais esse PT foi o mesmo também para o verdadeiro Partido dos Trabalhadores criado por Apolonio Carvalho, Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Hollanda.

MORAL DA HISTÓRIA – Nunca deixe que o peguem de calças na mão. Sem cueca é pior que cueca com mancha de batom.

TELEMARKETING

Você já sabe como eu sou. Às vezes estou casado, às vezes não. Sempre sou meio solteiro em qualquer ocasião. Volta e meia, tenho que exercitar meus neurônios de Garanhão para escapulir de uma saia justa.

Outro dia, lá vou eu pela estrada que leva às fronteiras com a Argentina, na agradável e aconchegante companhia de uma das minhas eventuais e sempre fiéis esposas. Sentindo a vida fluir bonita, dirigindo meu Range Rover Evoque, da Land Rover, tocando em frente sem me preocupar com o consumo de combustível, eis que vibra e grita meu celular. Nefando artefato moderno, esse!

Soar assim, sem mais nem menos, dentro de um utilitário leve e esportivo como esse meu Rover zerinho a caminho de um formidando weekend  é despertar suspeitas em qualquer esposa, amada, amante por mais loira que ela seja.

Tirei o celular do bolsinho superior da camisa pólo - todas as minhas Lacoste têm bolso - e, de relance registrei na retina o nome de Mellanie. Com a rapidez de um flash e sob a curiosidade penetrante de minha parceira ao lado, atendi:

- Osvaldo? Aqui não tem nenhum Osvaldo!

Encerrei o papo. Desliguei o celular e expliquei para a minha doce companheira:

- Não atendo mais essa porcaria. Esse telemarketings não tem noção. Onde já se viu telefonar em fins de semana...

Ela sorriu compreensiva e manhosa aconchegou-se a meu ombro. Só acordou de seus justos sonhos quando pararamos en una gasolinera, para saborear una medialuna com cafezinho brasileiro, mas com jeito argentino de servi-los: con caramelos de café, azúcar y edulcorantes.

MORAL DA HISTÓRIA - Nunca dê o número do seu celular para alguém que se chame Mellanie. Ela vai querer falar com você nas horas mais impróprias.

22 de out. de 2011

O VALOR DAS RUGAS

Quanta coisa se pode encontrar nas rugas de alguém. Com boa vontade, é claro. Elas podem, em certos casos, mostrar que já passamos da metade do caminho de nossas vidas. Se isso é bom, ou ruim, tanto faz como tanto fez.

As rugas podem dizer, por exemplo, que cada um tem a idade do seu próprio coração. Podem revelar para quem vê a vida com bons olhos, que não raro é muito mais agradável e esperançoso ser um jovem de setenta anos do que um velho de quarenta.

Pois, eu já tinha mais que a idade do meu coração quando me engracei pra cima de uma diarista linda que minha tia Margarida, uma flor de pessoa, havia contratado para assumir as tarefas da sua casa de veraneio, em Playa Del Carmen, a 70 km ao sul de Cancun, no tal de Caribe mexicano.

De diarista, Libertad logo foi promovida a governanta, com direito a casa, comida e regalias condizentes a quem era tiquitita pero cumplidora.

Como sobrinho mais chegado, eu tirava temporadas praianas por lá. E foi numa dessas que não resisti aos encantos, sorrisos e meneios daquela gatinha manhosa de trinta e dois, trinta e três anos, se muito. Tia Margarida era o máximo. Que tia maravilhosa... Botar pra dentro de casa uma preciosidade daquelas. Pediu, levou.

Não vou me perder em detalhes. Pulo todas as pequenas cantadas que dei em Libertad, para lhes repassar a que calou fundo no seu coração.

Com o dobro e mais um pouco de sua idade, me foi fácil perceber as rugas que nos separavam. Meu caráter, no entanto, não tinha nada a ver com a vergonha dessa defasagem de tempo entre nós. Bolas, eu não queria seu amor, nem casar com Libertad; queria entrar na sua vida. Quer dizer, vida mesmo não é nome da rosa. Queria entrar, entrar e pronto. Vocês já sabem como e onde.

Era um entardecer de sonho. De sol saindo para dar lugar à lua que já mergulhava nas águas do mar das Caraíbas. E eu ali, de frescura com Libertad que já tinha vencido as lidas da casa.

A cada frase murmurada, passava-lhe a mão pela morenice de seus braços, sem que ela mostrasse rejeição. Ao contrário, seus pelinhos se eriçavam. Ela era quente. E eu fui conversando. E abusando devagar e sempre. Libertad me deu entrada. Com vozinha rouca e cálida me animou:

- Sabe, siempre me ha gustado los hombres mayores ...
- Você gosta mesmo de homens mais velhos, meu anjo? Não acredito.
- Verdad. Los hombres mayores tienen más experiencia, son menos atrevidos.
- Mas e a pele, a diferença de maciez, as rugas?...
- Oh, sí, siempre hay alguna diferencia que hace una cierta distancia ...

Putamerda! Eu não deveria ter tocado nesse assunto. Mas, já que a coisa tinha descambado para esse lado constrangedor, mandei o caráter às favas e fui buscar a igualdade na tal experiência a que ela se referira.

- Sabe, Libertad, essa besteira de rugas é puro preconceito.
- Prejuicio, así?
- Já te explico meu anjo. Quando nasci e fiz xixi no mundo pela primeira vez, a parteira que me atendeu viu que meu pintinho já era todo enrugadinho. E achou uma beleza.

Não precisei de mais nada. Libertad sorriu e, em seguida suspirou ao sentir que minhas mãos percorriam suas pernas lisas e eriçadinhas como eu gostava de ver e de sentir.

Uns poucos minutos depois ela percebia que aquelas rugas mais sigilosas que as da minha cara de pau, se tinham tornado lisas, mais evidentes e viçosas como poucas das que ela já havia visto e sentido na vida.

MORAL DA HISTÓRIA – A idade da mulher está na cara; a do homem, no seu ânimo. (Somerset Maugham).

JOGO DE AZAR

Certa noite vagabunda, numa dessas sedes clandestinas de clubes esportivos de segunda divisão, um carteador novo, enorme, gordo, glutão e estourando de sorte, batia todas as grandes paradas. Nas pequenas rodadas daquele pife de bater com a louca, ele nem ia. O cara estava rebentando; tava com o buzanfan que era uma rosa.

Era de uma cidade-satélite de Pelotas. Chegara para fazer compras e ficara para um pernoite de final de semana. Descobrira o pequeno antro de carteado e, viciado como ele só, se abancara por ali mesmo.

Eu apenas mirolhava a jogatina, traçando um vermute com cachaça e Underberg, já que aquilo não era ambiente para Dry Martini, nem para a minha querida finlandesa com nacos de laranja. Apenas fazia tempo, para partir para as quebradas daqueles tempos, hoje tidas como baladas.

Carlito Juruá já estava cansado de sair pifado e perder todas na primeira ou na segunda volta.

Naquela rodada ele saiu pelo coringa. Estradulou. Dobrou todas as apostas que se sucediam. Todos redobravam. Parecia que todo mundo estava batido. Ele seria o terceiro a jogar. Era impossível perder aquela parada. Ia tirar o pé do barro.

Feitas as apostas. O que jogava de mão foi ao jogo. Comprou a primeira, não gostou e comprou a segunda. Encaixou-a no seu buquê de cartas e largou a que não prestava em cima da mesa. Carlito – de mão cheia - moveu-se para comprar no baralho, certo de que iria aumentar sua chance, quando o mastodonte rabudo abriu o seu leque no pano verde:

- Deu pra mim!
- Quiopariu! Vai ter sorte assim na casa do cacete! – irritou-se Carlito.
- Jogo é jogo, meu. Não chia – vociferou o grandalhão, arrebanhando o bolo de fichas.
- Não te agranda, ô corno! Chifrudo! – extrapolou Carlito.
- Cumé quié?!?
- Chifrudo, sim. Quem tem sorte assim no jogo, é infeliz no amor. Corno! E daí?...

Esbravejou e se arrependeu na mesma hora. O animalão levantou da cadeira, cresceu na sua frente e mostrou na cintura um Colt 44 de dar inveja ao Clint Westwood.

- Ô bundão, tu me chamou de corno, de chifrudo?!?

A coisa ia de mal a pior. Carlito engoliu o pomo-de-adão e quase sumiu na cadeira. Ficou assim como quem queria comer a toalha. Os outros parceiros embranqueceram em efeito dominó: à medida que se olhavam, iam perdendo a cor. Deu branco total.

E foi então que eu tive que me meter. Com voz calma e serena desanuviei o ambiente:

- Ei, ei amigo... Ele te chamou de chifrudo, sim.
- O quê... – o possante já ia topando briga comigo também. Tinha peso pra isso.
- Ô amigão foi chifrudo sim... Mas chifrudo no bom sentido, cara.

O tom conciliador daquela minha ridícula intervenção desarmou a animosidade do grandalhão ofendido. Aos poucos, a mesa estava cercada de risos amarelos. Carlito foi crescendo no seu lugar, enquanto o sortudo  de testa proeminente e burrice estampada tentava resolver se aceitava aquilo como desculpa ou como brincadeira. Sentou-se. Aí, só aí então Carlito deu sinal de vida:

- É sim, chifrudo... Chifrudo no bom sentido – conseguiu murmurar amigavelmente.
- Ah, bom. Se foi no bom sentido da palavra, tá certo. Vamos pro jogo.

Carlito ainda insistiu por ali uns quinze minutos. Como a sorte não queria nada com ele, deu os trâmites por findos e foi tomar comigo a sopa da madrugada no Restaurante-35.

MORAL DA HISTÓRIA - Com o Garanhão por perto, ninguém paga vale pra ninguém.

21 de out. de 2011

TARDES DE PENSÃO

Eu já fui cabareteiro. Desde os tempos de frangote que eu gazeava as aulas da tarde e me metia nas pensões. As pensões aquelas, antigas, lugar de viração das gurias que vinham da Colônia para conhecer a vida na cidade e acabavam se promovendo de empregadinhas domésticas a mulheres de vida fácil.

Claro que eu não era o Gazeteiro Solitário. Tinha uma turma boa que juntava a mesada e os dinheiros que a gente fazia com a venda de Gibis na porta do cinema e que me estimulava a ser o Garanhão Mirim de Pelotas, muito mais do que ir às aulas de canto orfeônico, álgebra e latim.

Nossas línguas eram muito menos mortas. Pelo menos de três em três semanas, tinha matinê de fuque-fuque da nossa patota pelos bordéis vespertinos, já que os noturnos tinham as portas fechadas para a pirralhada. Mandinho não entrava.

Era bom. A gente batia educadamente à porta da pensão, usando o código de sempre: tantarantantan duas vezes e um tantarantan isolado. Pronto, era um verdadeiro “abre-te Sésamo” para o início de mais uma jornada das nossas 1001 noites às tardes.

E agente bebia cerveja, comia pipoquinha e beijava as moçoilas com cheiro de colchão e gosto de amendoim torradinho. A gente gostava, ué. E já sabia, era só bater e entrar que elas já estavam nos esperando.

Ás vezes, não é que a gente dava com a cara na porta é que elas tinham saído para fazer compras. Blusinhas, vestidos, sapatinhos novos e até coisas do armazém da esquina: lata de banha, arroz, feijão.

Massa não. Massa, elas mesmas faziam com aqueles rolos que as esposas usavam para ameaçar maridos farristas. Elas eram prendadas. Tá pensando o quê? Tinha uma, Mariana, que fazia até talharim. Ficava uma beleza.

Nós cansamos de comer, nas nossas velhas tardes, talharim na manteiga e alho, aos copos de vinho da Colônia que elas traziam, sempre que iam visitar os pais nas fazendolas rurais onde tinham nascido.

Nessas tardes de compras, a gente ficava esperando. Escolhia uma mesa redonda que coubesse a nossa turma, abríamos o frigorífico e nos servíamos de cerveja. Tudo na maior confiança. A gente já era da casa. Nunca bebemos um gole que não se pagasse por ele. O Brasil era honesto naquele tempo. Faz tempo isso. Muito tempo.

Pois naquela tarde, lá estávamos nós. Batemos na porta do que se chamava de lupanar. Não nos atenderam. Sem perda de tempo, levantamos o capacho que tinha um coração desenhado espetado por uma flecha de Cupido e superposto à saudação em relevo: “Seja Bem-Vindo”.

Pegamos a chave no inimaginável esconderijo e fomos nos adonando. Éramos seis naquela tarde antiga. O nosso time estava assim escalado: Garanhão de Pelotas, Tio Banda, Pezão, Maionese, Quimeras e um convidado, El Cantor, candidato a integrar-se à patota.

Quimeras era um baita amigão. Inteligente, bom de bola, bom de briga, piadista incurável, espírito alegre, tão alegre que era viado . Viado, porque naquela época ninguém tinha ouvido ninguém chamar ninguém de gay. Viado, e não veado. Viado, Quimeras era fresco assumido e bem-resolvido.

Tinha seus casos com todo mundo. Com quem bem ele quisesse. Menos com a nossa turma. Ali, ele era só amigo. Amigo mesmo. Gente boa. Não namorava ninguém, pois a gente entendia Quimeras, mas não entrava na dele. Nem nele.

E, então, dito isto, voltamos à pensão da Carminha. Lá estávamos nós. As gurias estavam demorando. Já tínhamos bebido uma cinco ou seis Brahmas da caixa de Antarctica que estava sob as barras de gelo.

Foi então que, nos demos conta. Fazia já quase meia hora que Quimeras e El Cantor – o garotão espadaúdo e bom de soco que estava na nossa aula, tinham sumido da mesa. Tio Banda foi o primeiro a abrir o bico:

- Ei, cadê o Quimeras e El Cantor? – perguntou como se quisesse resposta.
- Foram ver se tinha alguma guria dormindo – informou Maionese.

Eu e Pezão nos entreolhamos. Corremos os olhos para os olhos de Tio Banda e Maionese e sorrimos, somando os ares de cumplicidade... Tio Banda, expedito, baixando a voz e afastando o copo para o lado, sussurrou sugerindo:

- Eles tão muito calados. Vamos dar uma olhada no que eles estão fazendo..
- Hmm, aí tem. Acho que o El Cantor tá comendo o Quimeras... – Disse Maionese.

Pô, lobo não come lobo e a gente nunca usou as camas das gurias quando elas não estão aqui... – esbravejou Pezão.

Em seguida, nos levantamos e, sem fazer ruído, subimos a escada que levava a um mezanino cheio de portas. Nós fomos abrindo uma por uma. Nada. Lá no quarto número 5, abrimos e enfiamos a cara. Os quatro ao mesmo tempo. E não deu outra. Eles estavam mesmo fazendo o que a gente tinha pensado.

Mas, a vida não é simples assim. O que se pensou que era, não era bem assim. Eles estavam numa boa. A gente ficou até meio chateado de interromper o lufa-lufa da dupla, mas gritamos a uma só voz:

- O que é isso, companheiros?!?

Flagrados no ato. Eles desviaram a atenção um do outro e se voltaram para nós. El Cantor, forte, suado, esbaforido, estava sobre o Quimeras... Sentado no Quimeras!

E Quimeras, de peito pro ar, estava enfiado até os gorgulhos no El Cantor. Sem demonstrar espanto, El Cantor não perdeu o rebolado. Deu uma ajeitadinha na posição, acomodou-se melhor no pratilevas de Quimeras e nos surpreendeu de novo:

- Aí ó! Por essa, vocês não esperavam!
- ?!?
- Surpreeesa! Ó eu aqui ó, um baita macho, sentado na manjuba dum puto! Você já tinham visto isso na vida, um macho dando pra um viado?!?

E riu feliz e descontraído, como se aquilo fosse apenas um prêmio a nossa curiosidade. Fechamos a porta, voltamos ao salão. Deixamos o dinheiro das cervejas em cima da mesa e nos mandamos. Naquela tarde, não esperamos pelas gurias.

Levou tempo para readmitirmos Quimeras na nossa turma. El Cantor nunca mais foi convidado para as nossas gazetas de quarta-feira.

MORAL DA HISTÓRIA – E você ainda quer botar moral numa história dessas?!?

VINÍCIUS, O AUDAZ

Vinícius vendia a fama de prepotente bonito, novo-riquinho truculento, metido a valente. Comprava briga por nada. Usava seus conhecimentos de acadêmico de Direito para bancar o defensor dos mais fracos. Só encarava parada dura. Sabia brigar e gostava de brigar. Um craque em briga de rua. Seus feitos eram contados pelas rodadas de exibição de vantagens que fluíam, com freqüência, pelas mesas de bares e restaurantes da cidade.

Num desses rabos sujos de uma velha e cansativa noite de farra, ele chegara de um baile na zona rural e resolveu tomar a sopa da madrugada, no Boteco-24, um tradicional desaguadouro de tragos e mágoas noturnas.

No ranking da revista 4-Rodas, era um bar copo-sujo que parecia um vagão de trem. Havia mesas para quatro clientes, dos dois lados de um corredor que terminava no balcão, onde em banquetas de caubói, o freguês comia e bebia suas dores e suas mentiras. Os mocinhos da elite apareciam sempre por lá; as mocinhas, não.

O lugar estava cheio. A clientela tinha de tudo: garotos da alta, pés-rapados, brancos, negros, mulatos, meninas de pensão e mulheres da vida. Tudo já comido e bebido. Ou só curando o porre na base da sopa e do caldo verde.

Vinícius mal botou o pé na soleira da porta e seus ouvidos de tuberculoso, captaram uma ofensa que partira de uma mesa, bem no meio da casa na lateral esquerda do bar, ocupada por um terrificante quarteto de enormes crioulos, certamente egressos da estiva do porto de cabotagem de Realeza.

Ele os conhecia da beira do cais. Já tinha comprado confusão com um deles, num puteiro lá por perto, fazia pouco tempo. Agora, a provocação fora algo assim, parecido com:

- Ei, chegou aquele branquelo fiadaputa...

Vinícius fingiu que nada escutara. Caminhou calmo e firme, com um sorriso congelado no rosto, na direção do balcão lá no fundo. Quando chegou à mesa do provocador, encarou o quarteto.

Seus membros – enormes, diga-se de passagem - tomavam uma suculenta canja em suas terrinas de cerâmica. Vinícius baixou a cara junto à cara do homenzarrão negro que o chamara de fiadaputa e, olho no olho, boca juntando o seu bafo de uísque ao bafo de comida do desafeto, perguntou com voz grave e cavernosa:

- O que tu tá fazendo aqui, no lugar dos brancos, negão feio?
- Tomando sopa, palhaço.
- Então, bom apetite! Cuida aí desse frango!

Propositadamente nojento lançou uma cusparada no prato do inimigo e, abrindo o sorriso mais branquelo que podia, retomou a passos de solene cadência a caminhada rumo ao balcão.

A meio caminho sentiu no ombro o peso da manopla do estivador. Virou-se e tomou um murro no nariz. O sangue encheu sua garganta e toldou seus olhos. Assim mesmo, reequilibrou-se e devolveu a gentileza. Pegou mal: o golpe entrou embaixo da mandíbula e derrubou o negrão.

Daí pra frente, não contou, mas deve ter levado uns vinte socos na cara; dez nas costelas e nada menos de uma dúzia de pontapés no estômago e nos escrotos que até podiam ser roxos, mas não eram de ferro. Gritou, gemeu e sentiu uma dorzinha que lhe abandonava o saco e invadia o esfíncter. Ah! Que vontade ele sentiu de dormir e ir pro céu...

Dado por vencido foi abandonado pelos estivadores que voltaram à mesa, como se nada tivesse acontecido. Pediram nova rodada de sopa e voltaram à tarefa de acabar com a ressaca.

Meio minuto depois, os dois negros que estavam de costas para Vinícius, mergulharam de cara dentro das terrinas com sopa escaldante. Os pratos se partiram. Eles quebraram a cara.

O caldo virou molho pardo. Logo Vinícius virou a mesa onde ainda estavam dois deles e chutou os dentes de um e a testa do outro, sem que ambos tivessem tempo para qualquer reação. Agora eram os estivadores que dormiam. Vinícius pegou um lenço, estancou o sangue do nariz quebrado e chutando a cabeça de um que lhe pareceu ainda acordado, saiu calmamente do boteco. Antes de chegar à rua, ainda gritou para o dono da casa:

- Bota a despesa toda na minha conta. Amanhã eu pago tudo!

Estou lhes contando assim essa historieta de bar de uma das madrugadas da minha cidade, porque foi assim que ela me foi contada pelo próprio Vinícius.

Acontece que, naqueles tempos idos, eu era médico residente de um dos hospitais privados que atendia como se fosse público.

Fui acordado no meio de um sonho divinal que me enrolava nos lençóis das três mulheres ideais que, muito mais tarde, seriam as minhas inseparáveis secretárias-executáveis.

Estava pronto para dizer que eu não estava, quando a enfermeira me disse que se tratava de um tal de Vinícius, um cara bonitão, meio amarrotadão, que insistia em ser meu amigo e só queria ser atendido por mim.

Daí a dez minutos, um pouco menos, Vinícius tentava me enrolar com uma daquelas histórias que só os pinguços que se metem em confusão nas madrugadas conseguem inventar.

Começou dizendo que tinha sofrido um acidente de carro e batido com a cara num poste. Pediu-me também um remédio qualquer para aquela dorzinha chata que estava sentindo no ânus. Não resisti e entrei no jogo:

- Tá doendo aí?!? – perguntei enfiando o pai-de-todos no seu orifício búndico.
. Não é bem uma dor... – Disse ele tentando escapulir do dedão.
- Ai, ei, ei Dr. Garanhão... Sai, sai. É só uma dorzinha assim ó...
- Assim, assim?... – Prossegui de dedo enfiado nele por cima das calças.
- É assim, ó. Uma vontade de ir aos pés...
- De ir aos pés?
- É. É... Vontade de cagar. Cagar, meu querido! E sai daí! Sai daí!!!

Saí. Saí e dei uma risada na sua cara, antes de ameaçar:

- Se você não me contar mais essa briga eu não tiro o dedo daqui... Vamos, desembucha Vinícius, com quem foi dessa vez?

E foi assim que eu fiquei sabendo de tudo. Ele me garantiu que só foi às vias de fato por que, bolas, fiadaputa é rapadura! Só por isso eu pude lhes contar esta aventura. Ah sim, dois anos e meio depois, Vinícius morreu de uma rapadura chamada câncer nos testículos.

MORAL DA HISTÓRIA – É na audácia que se escondem os grandes medos.
Rebeldes líbios, agora chamados de revolucionários, anunciam a prisão do filho de Kadafi
Ooops!
Era Edinho, filho de Pelé!

20 de out. de 2011

NÃO FUMO!...

Quem quiser que acredite, mas este seu Garanhão de Pelotas aqui, um dia, foi adolescente. E a minha turma era da pá virada. Eramos todos mais ou menos assim como um "pobre samba meu": sofríamos a influência do jazz. Cada um queria ser mais parecido com o James Dean. Parecido com ele, é claro, antes que se esbugalhasse com seu Porsche 550 naquele acidente contra um Ford Custom Tudor 1950 quando ia para uma corrida em Salina.

Imagine se alguém queria se parecer com Anselmo Duarte?! Não havia uma moçoila sequer que preferisse ser Eliana, ao invés de Natalie Wood.

Então, como era it da moda, todo mundo queria ser mais homem, mais rebelde sem causa, mais transviado, mais duro e dez, mais machoman, ainda que fosse nos mínimos detalhes, nos menores lances.

Era bosseiro tomar leite de madrugada no gargalo da garrafa; era tranchan usar cabelo abotoado atrás e foi aí, bem nessa época, que as camisetas Hering viraram coqueluche. A rapaziada passou a levantar ferro na moita, tinha que ficar sarado para ser durão. Era bonito fumar. Porra, o James Dean fumava.!

E foi numa daquelas tardes de matinés que a patota se reuniu, para saber quem iria azarar depois de mais uma sessão de cinema. Fernandinho, o Raposa, era um dos poucos da turma que não fumava. Não gostava. Também não dizia nada; fazia de tudo para que ninguém notasse que ele era um do time que não pita, nem na cola da cabrita. No fundo, no fundo, se sentia meio envergonhado por essa falha.

Pois, naquela tarde de domingo, estávamos em bloco defronte à entrada do cinema. Um garoto novo no grupo, com cara de Sal Míneo, tirou um maço de Colúmbia com filtro do bolso da jaqueta e, querendo agradar e criar ambiente, ofereceu um cigarro a Fernandinho Raposa:

- Você quer fumar?
- Não, brigado. Não Fumo... - E, fechando o cenho pra ficar com cara de durão, completou com uma certa vermelhidão na cara: - Não fumo... Só bebo e trepo!

MORAL DA HISTÓRIA - Quem não se encaixa nos modismos da sua turma, acaba vítima de seu próprio jeito de ser e parecer. Nem precisa ser, fundamental é parecer.

6 de out. de 2011

FLORES PARA O SOLDADO DESCONHECIDO

Esta aqui é em off. Não daqueles offs de políticos traíras que entregam o ouro pedindo sigilo só para que os jornalistas atirem a matéria na pá do ventilador sem qualquer prurido contra os odores que se espalharão. É off mesmo. Fique sabendo, pois, mas bico de siri. Tem que comer em tranca. Sigilo absoluto. Mais sigiloso que conta bancária de caseiros brasilienses.

O caso é que, neste exato momento, como repórter investigativo, estou infiltrado na comitiva de Dilma - A Bruxelante, que passeia pela Bélgica. Ela pensa que sou um dos assessores de Aninha de Hollanda - A Carioca que de holandesa não tem nada.

R. Stuckert F°/PR
Flores para o Soldado Desconhecido búlgaro.

Aninha tem é direito de achar que tem direito a diárias e hospedagens pagas pelas burras públicas pelos fins de semana que passa no Rio de Janeiro, cidade onde é residente e domiciliada desde que foi dada à luz pela mãe de Chico Buarque, seu irmão de fé, amigo e líder - sempre muito lido e ouvido pela nossa presideusa.

Dentre idas e vindas por lugares nenhuns já estivemos em Bruxelas, neste mês das bruxas, mas na ansiosa espera, na angustiante expectativa de ir à pequena Gabrovo, torrão natal de Pedro Rousseff - O Grande Pai da faxineira que no périplo entre a capital belga e Sófia, antissala do fim do mundo búlgaro, se transformou na humanitária enfermeira que se oferece para curar as dores e as crises do mundo ocidental.

Já estamos na Bulgária desde ontem. Estou aqui e agora - cale a boca, por favor! - infiltrado no grupo que segue Dilma - A Impoluta, até o Túmulo do Soldado Desconhecido. A coroa acaba de depositar uma xará de flores na tumba onde jaz tombado o herói que tombou na primeira guerra mundial, mas que recebe homenagens até hoje por todo e qualquer sinal de conflagração internacional.

Não há capital no mundo que não tenha o seu Soldado Desconhecido. O Rio de Janeiro, não tem. Ou tem. Mas isso não conta, pois se você não sabe, a capital do Brasil não é mais o Rio, desde JK que nunca foi desconhecido.

O que eu posso observar daqui detrás das lentes de minha câmera Rolleiflex é que ela já se afasta do túmulo e está com cara de guerreira ensandecida. Neste instante Dilma sussurra algumas imprecações retumbantes na orelha dos despejos de uma assessora da assessora da secretária do patriota titular da Pasta das Relações Exteriores do Brasil.

Ó, nesse momento, a servidora para assuntos de cerimonial e precedência afasta-se da primeira-presidenta. Vou ver se chego até ela. Pronto, cá estou. Ela é simpática, mas está com os olhos marejados. Vou ver se consigo alguma informação.

- Ei, gracinha, o que foi que deixou a nossa presidenta tão chateada?
- Chateada?
- É, ela tá com cara de quem levou uma sapatada, uma bengalada, sei lá...
- Nada demais. Ela só ficou puta da cara porque não compareceu ninguém da família do Soldado Desconhecido à solenidade... Ela achou isso uma desfeita, uma desconsideração, um desaforo.
- E daí?
- Daí que ela não adimite falhas no cerimonial. Está pensando seriamente em exonerar o Antonio Patriota assim que voltar ao Brasil.

Pronto. Valeu a pena vir até esta solenidade boba, criada só para preencher espaços vazios de agendas oficiais de quem não tem mais o que fazer na terra dos outros. Mas, por favor, não conte nada pra ninguém. Do contrário, vou ter que ir a Ancara, na Turquia, em avião de carreira.

De qualquer maneira, acho que tenho a manchete de hoje para os meus jornais: Soldado Desconhecido búlgaro derruba mais um ministro de Dilma!

MORAL DA HISTÓRIA - O Garanhão de Pelotas também é cultura. E não acredita em off.

25 de set. de 2011

O DIA DA PROSTRAÇÃO

Eu vi no sorriso agradável da secretária que me encaminhou para a sala de consultas do Dr. Proctógenes Dédalo, um sinal evidente de que ela percebera o brilho de avidez nos meus olhos. Capitulei diante do ar irônico que ela não conseguia esconder ao encaminhar-me para o imediato atendimento.

Aquela bonita macaca velha sabia do que se tratava. Não era nenhuma pitonisa. Ali só se tratava daquilo. E a minha ansiedade estava na cara. Era o rosto de quem se deixaria manipular no mais recôndito espaço vital da virilidade de um verdadeiro garanhão.

Passei com meu salvo conduto de cliente Vip pelos três ou quatro pacientes que aguardavam a sua vez de sentir os cutupicos, fazendo força para que não notassem no meu semblante qualquer vestígio de emoção.

Vá que um daqueles leguelhés tivesse boas idéias a respeito de minha visita ao doutor. Presumiriam, decerto, minhas tendências para a vida boa, vida alegre. De minha parte, notei de relance que havia uma espécie de felicidade conformada e contida em cada um deles.

Esses caras, eu manjo. Mal podiam esperar por mais uma sessão de uma boa massagem no esfíncter e suas redondezas. Tinham todos cara de um último tango em Paris.

O doutor me recebeu de braços abertos e um riso de dentes bonitos; tão bonitos que combinavam com seus olhos verdes que ladeavam um nariz bem feito para um rosto de meninão do Rio, de corpo sarado que vestia um jaleco de fina estampa que lhe caía como uma luva!

Nossa! Só aquilo já me causava arrepio. Mas tinha um pouco mais. Senti que tinha bem mais quando ele me segurou a mão com suas duas manoplas quentes e macias, num cumprimento que era, na verdade, uma agradável recepção, uma acolhedora manifestação de boas-vindas.

Mantive a devida distância. Não entreguei o ouro. Sentei-me diante de sua mesa de consultas e, enquanto eu lhe confirmava os dados contidos em minha ficha pessoal de estréia, eu não conseguia desviar a atenção do pai-de-todos da sua mão direita

Aquilo não era um dedo; era um instrumento fálico de conquista acostumado a corriqueiras incursões aos mais diversos bastiões de masculinidade. Minha cabeça conseguiu entrar no foco da complementação do cadastro médico:

- É a primeira vez?
- Como assim?
- Que você se dispõe a...
- Que fico prostrado? É sim, doutor.
- Não se assuste.
- Imagine.
- Você tem alguma preocupação?
- Assim, de ordem psicológica, não. Talvez de cunho corporal.
- Como assim, digo eu agora...
- É que eu gostaria de saber, doutor: depois do exame minucioso que eu sei que o senhor vai fazer, eu voltarei a ser o mesmo?
- O mesmo?
- É. Vou poder continuar desafiando meus amigos a fazer a prova da farinha? Terei as mesmas 30 pregas, ou ficarei com algum vestígio de que já levei ferro na vida?
- Ferro na vida?
- É. Bola nas costas.
- Nem se preocupe. Essas coisas são como crimes de colarinho branco, não deixam pistas. E se deixam, ninguém dá bola.
- Ah bom. Então tô prontinho pra você, meu doutor.

Ele não perdeu tempo. Encaminhou-me para trás de um biombo de luxo, com voz macia e quente me orientou sobre a melhor posição. Meio acanhado baixei as calças, deitei-me de peito para cima, joelhos dobrados e as pernas em V... V de vencido.

Minha posição majestosa parecia-se com o jeito que as grávidas adotam para um exame ginecológico. O proctológico é só a versão masculina da caprichosa invasão de privacidade.

Pois ele se aproximou. Seu dedo infiltrou-se pelos meus caminhos nunca dantes percorridos. E, de frente pro crime, olhando-me nos olhos, foi fundo. Cheio de curiosidades. Rodopiou lá dentro, pelas reberbelas e intertelas. Sem um naco de emoção.

Quando estava ficando bom, terminou. Sem qualquer sentimento. Sem um pingo de dor. Vai ver que é por isso, por não doer, que há tanta gente viciada em exame de próstata.

Extremamente profissional aquele rapagão saiu-se de mim. Livrou-se da luva e com o desdenhoso e tradicional sorriso do dever cumprido, me deixou à vontade. Sua voz já não era de um proctologista; tinha mais o som gutural de um oculista.

- Sentiu alguma coisa, Garanhão?
- Senti que foi rápido, meu doutor...
- Ah, sim. Acontece. Agora, fique à vontade e, se quiser, pode usar o sanitário aí ao lado.

Aí gelou geral. Ainda de calças meio arriadas, dirigi-me para o luxuoso lavado do consultório. Enquanto me higienizava, remordia-me de desilusão:

- Putamerda, borrei o dedão dele!

E foi assim, sem mais nem menos, que tudo terminou. O diagnóstico me foi repassado pela recepcionista quando eu já me encaminhava para um dos elevadores que serviam aquela torre do prédio de clínicas da saúde. Eu não tinha absolutamente nada. Minha próstata estava zerada.

O que me carcomia era aquele desejo intenso que, desde então, carrego até hoje comigo. É uma vontade de fazer loucuras que me faz cócegas irresistíveis bem naquele lugar que não dou para ninguém. Só empresto.

É uma crise crônica que me acometeu depois daquele exame inaugural. Bem que me avisaram que esse caminho não tinha volta. A próstata está ótima, cada vez melhor.

O problema agora é que não consigo passar duas semanas sem ir a um proctologista. Conheço todos nos eixos Rio-São Paulo e Brasília-Nova Iorque- Paris-Londres. Consulto com um de cada vez. Não repito nunca. Ninguém fica sabendo dessa minha adorável síndrome. E você aí, cale a boca que eu sei o que você fez no último verão.

MORAL DA HISTÓRIA – É muito, vale muito e pode muito o coração que sente as coisas como homem e as dissimula como discreto. Quem não sabe dissimular, não sabe o que é viver.