26 de jan. de 2012

Fairplay

Já que ninguém dizia isso, eu mesmo digo: fui um craque na modalidade futebol-da-bola-pequena. Jogava um bolão no futebol de salão. Rima, mas pode não ser verdade. Em todo caso, a minha paixão pelo esporte me dava o direito de ser magnânimo e de aceitar qualquer convite para jogar em times de segunda, de terceira e até de quinta categoria.

Jamais perdi um confronto entre casados e solteiros; nem deixei de fazer um pezinho naquelas peladas entre as equipes de rádios ou jornais e seus patrocinadores. Era um come bola. Um prostituto das quadras e ginásios. Na realidade, um apaixonado por qualquer tipo de futebol.

Naquela noite de sexta-feira, montamos o time lá da quadra sete do condomínio Las Figueras e fomos enfrentar um esquadrão do glorioso 9° Regimento de Infantaria, o Batalhão Tuiuti Futebol Clube. Na casa deles. Um ginásio bem construído e melhor conservado, como é do tamanho e feito das coisas do Exército. Afinal, quem tem mão de obra barata e diversificada como a dos recrutas, pode esbanjar serviço de limpeza e brilho. Até nos coturnos.

O jogo no primeiro tempo foi ótimo: 1x1. O nosso gol foi meu, claro. Na segunda fase faltou energia. Não, luz tinha de sobra; faltou energia para o nosso time. No meu bando de pernas-de-pau, eu corria por todos e todos não corriam por mim.

Quando vi, o placar era de 6x1 para os milicos. Louco para que o massacre chegasse ao fim pedi para bater uma falta na beira da área deles. Faltava talvez um minuto para terminar. Nos preparativos para a cobrança, levantei os olhos e dei com eles numa frase de puro fairplay e profundo espírito olímpico afixada no paredão dos fundos da quadra: "Lute, ainda falta um segundo"!

Corri para a bola. Passei por ela e... fui direto para o vestiário. Tomei meu banho, não falei com ninguém e nunca mais joguei no Las Figueras.

MORAL DA HISTÓRIA - Desgraçadamente eu sou um daqueles poucos que têm paixão por uma coisa sem querer tirar dela qualquer ensinamento. Desgraçada, ou felizmente.

19 de jan. de 2012

Alvíçaras! Posso ser um porre!

Porra, eu até já fui um bêbado! Abstêmio, jamais. Não tem sido raro que, pelos tropeções dessa vida, eu seja um porre.

Até quando desmancho castelos de areia; até quando piso na bola; até quando sempre sou um garanhão que não tem quando, nem pra quê, nem por quê, ainda que absolutamente limpo de pruridos morais e eventuais.

Saí de um affair - alvíçaras! alvíçaras! Affair é demais! - sem quê, nem pra quê, nem por quê... Saí, porra! E dei com os burros n'água. Dei, mas não confesso. Nem a pau. Porra, nem de porre!

Tanto é que, outro dia, mandei a bondade e a humildade que habitam meu coração à planfa que lamblanfa e postei um recado definitivo à breve amada que não consigo incorporar a minha alma inquieta.

Fui duro e definitivo. Mostrei àquela que me encanta, mas a quem não me rendo nem que me entregue a um demorado e doloroso auto-flagelo com um rebenque nas minhas costas prostradas num pelego que sou cativo de sua doce e instigante figura. Mandei-lhe um recado com todas as letras que cabem no meu empedernido coração:

- Eu te esqueço todos os dias!

MORAL DA HISTÓRIA - Todo mundo, até o Garanhão de Pelotas pode ser mau que nem um pica-pau. Ou endurecer-se, sin perder la ternura. E mais até: pra mim Platão é que sabia amar.

18 de jan. de 2012

Super Mouse

Sou um internauta de respeito. Todo dia, antes que o motorista do meu Hyundai Azera, cor de prata como a lua que expressa as minhas múltiplas personalidades, viajo pela internet como um desbravador de mares nunca dantes navegados.

Sou um misto de Cristóvão Colombo, garanhão pelotense,  perdido pelas belezas das índias, com Pedro Álvares Cabral, sonso e lusitano, tentando do alto de minha redundância, botar o ovo em pé.

No início da semana passada, já instalado no gabinete do imortal presidente da maior casa de tolerância nacional,  joguei-me às lides de lobista explícito, não me livrei da tentação e sentei-me à frente de um dos mais de dez exemplares de high generation computers que o Pai dos Marimbondos de Fogo tem, às custas do Erário*, em sua antessala acadêmico-presidencial.

Fundilhos presos à cadeira de belo espaldar, cerca de cinco imortais minutos depois, entrei em pânico. Mostrava-se-me teimosa a tela - tinha vida própria e linguajar apropriado - teimosa e absolutamente estática.

Não atendia a qualquer comando de minhas vontades, não sinais de submissão a qualquer mísero sinal do tal comundongo informatizado que o vulgo chama de mouse. Porra, até meus netos, dominam essa técnica de comunicação hodierna!

Tentei, tentei e retentei denodadamente na movimentação do pequeno artefato que nos liga com a vida e o mundo virtual. Nada. Porra nenhuma. Nem aquela porra que usei para acudir ao talento dos filhos de meus filhos, meus netos gênios nerds do inefável mundo da informática.

Levei mais de dez imortais minutos - essa porra da proximidade com um fardão, contagia inexoravelmente - na batalha contra aquela inusitada inércia do ratinho cibernético.

Levei e... Levei! Oba, o mouse reagiu. O mouse vibrou na palma da minha mão! Parecia que criava vida, saltitava e grunhia.

Foi só então que me dei conta de que estava manusenado há dez intermináveis minutos, nada mais e nada menos do que o celular ao invés do mouse.

Bosta! Que fiasco. Não atendi a chamada. Desliguei. Coloquei o celular no bolso da camisa de linho egípcio e me senti uma múmia.

Olhei para os lados, ri de mi  mesmo. Levantei-me e encerrei o expediente. Naquela manhã eu não tinha ânimo para mais nada, muito menos para uma puxada jornada de tráfico de influência.

RODAPÉ - (*) Erário, segundo nome próprio do Luiz que é também conhecido por Lula da Silva.

MORAL DA HISTÓRIA - Presta atenção na vida, cara! Com a atenção notamos as precisosidades e as colocamos em nosso acervo; com a distração deixamos cair ao solo o ouro e as pérolas como se fossem coisas triviais.

16 de jan. de 2012

Disfarçado de Motoqueiro

Tive meus dias de Palácio do Planalto. Nem mesmo o Garanhão de Pelotas é de ferro. Como assessor de projetos especiais da Secretaria de Comunicação daquele presidente baixinho que gostava mais do "cheirinho de cavalo do que do cheiro do povo", meus momentos de happy hour eram repartidos pelos bares dos arredores da Esplanada com o pessoal da segurança palaciana

Antes que eles tomassem o terceiro chope - hora em que se calavam para sempre sobre qualquer assunto palaciano - os arapongas até que eram bem divertidos. Contavam uma em cima da outra; poucas e boas

O Perninha Torta era um número. Boquirroto, não perdia a chance para dar bola fora. Essa do cheiro do cavalo foi uma. Estragou toda o esquema de marketing que preparavam para popularizar sua imagem.

Outra catilinária foi a daquela manhã de sábado, quando uma criança de uma escola pública da cidade-satélite de Taguatinga lhe perguntou, diante das câmeras de TV e dos microfones dos repórteres setoristas do Palácio, o que ele faria se ganhasse salário mínimo. "Metia uma bala na cabeça" - respondeu de imediato, com um sorriso, enquanto afagava o rosto da inocente criaturinha.

Dentre muitas historietas, saíam sempre algumas inconfidências de aventuras furtivas do espevitado presidente. Era um fincão de primeira. Sempre que podia, dava uma escapada para pular a cerca.

Era cuidadoso. Toda vez que saía para encontrar uma determinada e dadivosa dama da Corte, vestia-se de motoqueiro, dos pés à cabeça; macacões adequados, luvas, botas e o indefectível capacete que o protegia não só de eventuais quedas de sua pontente máquina de duas rodas, como resguardava a sua identidade.

Era assim que se livrava da curiosidade da mídia, sequiosa por deslizes presidenciais.

Nessas escapadelas de alcova, o homem cometia pecados que levavam os guarda-costas à loucura: bolas, a moto era a única no Brasil naquele tempo com 750 cilindradas; toda verde e amarela, era um espanto; ele era patrulhado, pelo percurso inteiro, por um comboio de dois Gálaxies LTD Landau presidenciais na frente e dois atrás; o fujão arrancava dos fundos do Palácio a 150 km/h rumo ao mesmo sítio, na região dos Lagos; assim que chegava ao jardim da residência dos furtivos encontros, ele descia da moto, caminhava resoluto com suas pernas arqueadas de cavaleiro republicano, rumo aos braços e abraços de mais um momento de lazer clandestino, com a cara e a coragem... De capacete embaixo do braço!

MORAL DA HISTÓRIA - A pompa e a circunstância de um disfarce oficial não esconde a fantasia de um presidente bom de cama. E, em casos de alcova, nenhum disfarce é usado para esconder aquilo que se deseja que os outros saibam.

14 de jan. de 2012

Vingança não tem fim...

Osvaldinho Langlois, mesmo quando comemorou cinquenta anos de fundação, nunca deixou de ser um guri arteiro. Foi craque de bola. Extrema esquerda por vocação. No futebol, porque na política não dava de bico e nem se colocava.

Uma postura - epa! postura é de galinha - um comportamento meio incompreensível para quem levava a vida na brincadeira. Não há nada neste planeta mais cômico e nem mais moleque do que política.

Osvaldinho tem sempre uma piada, uma tirada de humor inteligente e afiado para qualquer situação. A gente tem que tomar cuidado com ele, se não quiser pagar um mico na frente dos outros. Ou atrás - como decerto ele emendaria rápido e rasteiro.

Eu reencontrei Osvaldinho, numa tarde de verão** na praia do Laranjal, às margens da Lagoa dos Patos, a maior do mundo, desempenhando o papel de dono do cofre da padaria do Shopping Mar de Dentro. Depois da troca de flâmulas pelo tempo decorrido - coisa de três anos - desde o nosso último encontro, eu lhe fiz o pedido como cliente da casa, cheia de clientes:

- Vou levar oito cacetinhos*, um tablete de manteiga, uma Coca-Família e 10 copinhos de água mineral com gás...
- Ah, sim, Garanhão. Você quer que embrulhe, ou vai comer aqui mesmo?

A clientela riu do meu ar de surpresa. Quando mostrava ter entendido a pequena molecagem, teve tempo de me ouvir tentando sair da saia justa, fingindo que não ouvira o cutucão:

- Osvaldinho, por favor, eu vou levar também 20 dessas empadinhas.
- Ah, sim, pois não, Garanhão. Elas estão ótimas - disse solícito, com ar de vencedor
- Ótimas? Você já as provou?
- Claro, provei, estão uma beleza, Garanhão.
- Então suspende o pedido. Não como nada babujado! Não como resto de ninguém.

Paguei a conta sob os risos da mesma freguesia. Na manhã seguinte, domingo de folga para os padeiros, fomos jogar uma pelada entre casados e solteiros, no gramado praiano do Caiçara F.C. – o estádio "Comendador Mário Franco".

Osvaldinho me encheu de passes tipo rosbife - todos mal passados - só para mostrar para a turma que não jogo mais nada. Sua vingança foi malígna.

RODAPÉ - (*) - Cacetinho - Em Pelotas, pão francês é "cacetinho". Pelotense adora levá-los para casa. Tanto o francês, quanto o cacetinho.
(**) - Tarde de Verão - Lá por Pelotas, quando há mesmo uma tarde de verão, ela cai num sábado.

MORAL DA HISTÓRIA - Não é possível a ninguém vingar-se de uma molecagem sem cometer outra e mais uma e mais outra...

13 de jan. de 2012

O Reencontro

Fui à festa de arromba do casamento da filha de um velho companheiro de bancos escolares. O cenário escolhido foi um sítio do tamanho de uma estância, entre Canela e Gramado. Um festão.

Tinha gente que não acabava mais. Alguns velhos conhecidos, outros nem tanto e muitos absolutamente nunca vistos ou por mim imaginados.

Dentre os convivas, vislumbrei uma verdadeira lenda viva. Um colega de ginasial. Daqueles que entram na escola bem depois que a gente já capitulou às vontades da mãe e às ordens do pai. Ialtamiro, o bom e batuta Ialtamiro, pelas minhas contas, já beirava os 80 anos de idade.

Cheguei-me ao longevo amigo a quem não via fazia muito e muitos anos. Algumas décadas, na verdade. Dei-lhe um forte e caloroso abraço. Ele, diplomaticamente, correspondeu. Abraçou-me como se ainda soubesse com quem estava falando:

- Que prazer ver você novamente!
- Que alegria - respondi ao vetusto enganador.
- De que cidade você veio aqui pro casamento? - pesquisou-me, querendo caçar minha identidade.
- Vim de Pelotas, Ialtamiro.
- Ah, sim, de Pelotas... Eu gosto muito daquela cidade. Estudei lá.
- Eu sei...
- A última vez que estive lá, faz tempo, foi pro casamento de um grande amigo, o Garanhão de Pelotas.
- Pois eu também estava lá.
- Você foi ao casamento do Garanhão?
- Fui, Ialtamiro... Eu era o noivo.
- Garanhão, meu amigão!!! Por Deus Nosso Senhor, eu jamais te reconheceria...
- Entendo. Faz muito tempo...
- Não, não. É que você tá gordo, careca e parece mais velho que eu.

Fingi que não ouvi. Abracei-o com afeto e o acompanhei até à mesa de doces, bem perto do bolo. Providenciei-lhe uma taça de guaraná e fui rever outros antigos parceiros.

MORAL DA HISTÓRIA - Depois de quase uma década de décadas, a memória é um espécie de paraíso de onde fomos desterrados. Ainda mais quando alguém se chama Ialtamiro.

12 de jan. de 2012

Punguista

Dona Mariana era para mim o que Dilma é para Luiz Erário Lula da Silva, uma governanta. A diferença é que ela era uma boa governanta. Ela cuidava de minha residência no Lago Sul com enorme eficiência. Não dormia no emprego.

Todo santo dia, ia e vinha para cumprir suas obrigações. Na minha e na sua casa. Naquela quarta-feira, cerca de cinco da tarde, dona Mariana tomou - como de hábito - o coletivo para a cidade-satélite de Samambaia.

O ônibus estava quase lotado. Achou um lugar vago ao lado de um passageiro de feições rudes. Acomodou-se sem dizer e nem receber palavra. No trajeto do Plano Piloto para a região do Entorno o carro foi ficando lotado.

Com o vaivém do ônibus, volta e meia dona Mariana levava um cutucão do parceiro de viagem. O cara era meio incômodo, meio atrevido. Dona Mariana se defendia como podia. Não queria fazer escândalos, muito menos alardear um assédio sexual. Foi aguentando.

Lá pelas tantas, desperta da modorra, ela quis saber as horas, olhou para o pulso e - surpresa! - seu relógio tinha desaparecido. Desaforo!

Não teve dúvidas, abriu cuidadosa e lentamente a bolsa, tirou uma tesoura de unha e, moto contínuo, de mão trocada para que ninguém notasse, encostou com firmeza a ponta do pequeno e agora perigoso artefato nas costelas do safardana. Entredentes bafejou no ouvido do punguista:

- Passa o relógio. Vamos, passa o relógio!

O homem tomado de medo diante da iminência de um barraco e uma reação imprevisível, entregou o relógio em silêncio e sem reclamar. Na primeira parada ele desceu, calado, cara fechada e sem olhar pra trás.

Dona Mariana, enfim, chegou ao seu destino. Desceu, entrou em casa e foi conferir a bolsa. Lá estava o relógio. Mas - porra! - não era o dela. Era um relógio de homem. Do homem que ela ameaçara. Um bom relógio, melhor que o dela.

Dona Mariana quase morreu de vergonha quando, ao colocar sua bolsa em cima da mesa da sala, deu de cara com o seu próprio relógio. O relógio que ela esquecera de colocar no pulso antes de sair pela manhã para fazer faxina na minha casa no Lago Sul.

MORAL DA HISTÓRIA - O medo e a desconfiança são os mais injustos e cruéis conselheiros das pessoas de bem.

11 de jan. de 2012

A Vida no Toque-Toque

Até um Garanhão como eu pode ter sua porção hipocondríaca. Pois, durante bom espaço dos meus anos, eu fui um daqueles adoecidos sisudos, de ar preocupado. Um hipocondríaco daqueles convictos, quase malucos de tão líquidos e certos.

Por isso mesmo eu era portador de uma doentia e incurável desconfiança nos diagnósticos médicos. Sempre comprovava o resultado de um consulta. Procurava pelo menos mais dois especialistas sobre os meus sintomas da vez.

Urologistas, nunca foram menos de três; clínicos gerais, de dois a quatro por qualquer indisposição; otorrinos, eram menos, só dois; neuros, endocrinos, psiquiatras se quedaram perdidos em minhas contas.

Quando me senti quarentão, desconfiei da próstata. Fui com a cara, a coragem e com tudo para o tão difamado exame de toque. Fui. E sei-lá, senti uma coisa assim diferente que me fez procurar logo outro proctologista, mesmo sem saber o resultado da primeira grande prova da farinha.

Logo lá estava eu, deixando-me imolar pelo esfíncter uma vez mais. E sem que me desse conta, cinco dias depois, eu sentia o dedo da melhor pesquisa anatômica fazendo furor no que havia de mais profundo à flor de minha pele.

Assim é que, com o maior prazer de um desconfiado, fui acumulando comprovações de laudos e mais laudos. Dali em diante, passei a perambular de mão em mão, a andar de dedo em dedo atrás da comprovação dos diagnósticos. Minha vida virou um inimaginável toque e toque.

Andar na ponta dos dedos para mim virou rotina. Gasto uma grana com tanto teste, mas levo numa boa, afinal a saúde assim me custa caro, mas compensa. Como compensa!
Tá bom, eu sei, o meu caminhar já não é o mesmo, mas a minha felicidade tem uma saúde de ferro. Outra coisa: tudo não passou disso mesmo. Um dedo por vez já tá mais que bom para essa moléstia de fundo telúrico.

MORAL DA HISTÓRIA - Para um garanhão hipocondríaco, a vida só vale a perna ser vivida quando ela é profundamente saudável.

10 de jan. de 2012

Justiça na Forma da Lei

Para não ficar em casa cofiando os pelos pubianos da minha gata loira naquela manhã de domingo, fui participar da Maratona Anticorrupção, movimento apartidário que se realizava pelo Eixão Monumental, em Brasília.

Antes que começasse a passeata/caminhada - maratona era demais para tanto cidadão de bem cívico, tão mal de forma física - um político teve a ousadia de se imiscuir no rol das pessoas. Foi alijado aos gritos e resmungos de "Fora, Agnelo! Vai te juntar com a tua turma".

Iniciada a caminhada-correria, fixei-me na performance de um cadeirante. Jovem, forte, espadaúdo, ele chegou à frente de pelo menos metade dos corredores convencionais.

O cadeirante foi para o pódio imaginário especial. A maioria dos participantes foi para o pronto-atendimento médico montado à margem da pista pelos organizadores da maratona de calças-curtas e largos sonhos de democracia.

Esperei que o atleta paraplégico recuperasse o fôlego e fui falar com ele. Conversa daqui, conversa dali fiquei sabendo que se tratava de um ex-policial "ferido no estrito cumprimento do dever". Ele foi serenamente didático ao me contar o incidente:

- Levei dois tiros nas costas durante um assalto ao ônibus que me levava pra casa.
- Você enfrentou os assaltantes?
- Negativo. Eles eram quatro. Manjaram que eu era "tira" e me executaram.
- Eles foram presos?
- Positivo, os quatro.
- Continuam presos?
- Negativo. Os meliantes morreram.
- Morreram? Simples, assim. Morreram?
- Positivo, morreram de tiro. Os malfeitores intentaram fugar do cativeiro...
- Uma fuga em massa?
- Negativo. A cada semana um deles encontrava a porta da sua cela aberta.

MORAL DA HISTÓRIA - Entre bandidos e mocinhos, vingança também é um prato que se come frio. Ou, o corporativismo continua sendo a mais forte e eficiente forma da sociedade fazer justiça.

9 de jan. de 2012

Estoques

Resolvi ser empresário da noite. Tinha tantos escrúpulos quanto esses ministros de Estado que perdem o emprego porque não perdem tempo na hora de recolher propina.

Nunca tive pruridos pecaminosos. Tinha uma alma sem jaça. Depois de vários anos tentando os melhores negócios dos melhores ramos, cheguei à conclusão absolutamente definitiva que business is business.

Poucos dias depois que muitos já me conheciam como investidor noturno, em plena sessão vespertina de uma casa de sauna finlandesa, um parceiro do tipo que se mete na vida de todo mundo, resolveu querer saber mais a respeito das futricas que corriam a respeito de minhas recentes iniciativas notívagas.

Com ares de entendido e de grande representante das forças vivas da sociedade local, o especulador deu às suas sondagens um grave tom de sugestão:

- Ouvi dizer que o melhor negócio pra quem investe na vida noturna é montar um restaurante ou um bordel...

Falou assim como quem deplorava a simples idéia de um cidadão de bom nível social ter a ousadia de explorar a putaria. Olhava-me como quem não adimitia sequer sonhar que alguém como eu, seu antigo companheiro de colégio e futebol, pudesse encarar a vida de um cafetão. Foi por isso mesmo que lhe respondi com prazeroso desdém pela sua moral e bons costumes:

- Pois, eu montei os dois.
- Ah, os dois... E por que um restaurante e um bordel?
- É que em caso de falência, eu posso comer o estoque.

MORAL DA HISTÓRIA – Um empresário da noite prevenido vale por dois e fala de boca cheia.

8 de jan. de 2012

Dedução Lógica

Eu era chefe de segurança do Palácio do Planalto. Cumpria à risca as minhas obrigações. Isso não queria dizer, de forma nenhuma, que era obrigado a gostar do presidente  da República, por acaso Luiz Erário Lula da Silva.

Naquela manhã de meio rebuliço pelo estouro do escândalo do mensalão, diante da porta do elevador que leva ao terceiro andar, onde fica o gabinete presidencial, um dos seus vinte guarda-costas comentou que Lula reclamara em bardos retumbantes que tinha levado "uma facada pelas costas".

Minha alma de segurança atento e esperto deslindou logo o dilema:

- Facada pelas costas... É por isso que ele não sabe quem foi.

O elevador chegou. O presidente, acompanhado de seu motorista, dois agentes federais e um tal de Zé Dirceu, subia direto da garagem para o gabinete. Começava mais um dia de intenso trabalho pelo bem dos brasileiros e felicidade geral da nação. Luiz Erário dava mostras de que não sabia mesmo de nada.

MORAL DA HISTÓRIA - Aquele que suprime a traição no exercício de um governo, jamais terá poder algum.

7 de jan. de 2012

INTOLERÂNCIA

Aquele cara era um chato. Toda vez que me encontrava pelas quebradas da cidade, me pegava pra peteca e queria discutir futebol.
Só porque, naquele lugar do passado, eu trabalhava como cronista esportivo de um dos jornais da minha patriazinha lá no Sul, ele achava que eu não fazia outras coisas na vida.

Eu estava naqueles dias. Meio menstruado da cabeça. Sem paciência fui me remoendo à medida em que, no meio da roda de aposentados e malandros em torno de nós, ele rebatia tudo que eu dizia a respeito do Brasil e do Pelotas, os dois maiores adversários do campeonato gaúcho, afora a tão desprezível quanto imbatível dupla Gre-Nal.
Sei lá que besteirada ele disse. Só sei que era mais uma. Perdi a paciência. E vituperei pra cima dele:

- Você é um descalcificado!

Foi a gota d’água. Ele escancarou um riso irônico e não perdeu a oportunidade de me corrigir uma vez mais na frente dos outros:

- Descalcificado?!?
- É descalcificado, sim!
- Tá, deu pra ti. Não vou discutir mais. Tu é uma toupeira, Garanhão... Não é descalcificado. Tu quis dizer desclassificado. Des-clas-si-fi-ca-do!
- Toupeira é quem chama. Tu é descalcificado, sim! Tua mulher te mete guampa há anos e até hoje não nasceu chifre nessa tua cabeça!

A roda se desfez na mesma hora. Ele nunca mais veio me encher o saco, quando me encontrava pelas ruas de Pelotas, por mais sozinho que andasse e mais quisesse bater papo com alguém.

MORAL DA HISTÓRIA – Ainda que todo o progresso esteja baseado na paciência, toda a sociedade se revela na intolerância.

6 de jan. de 2012

O Perneta

Já disse e vou repetir: comer a mulher dos outros e não contar nada pra ninguém é a mesma coisa que fazer um gol de bicicleta num estádio vazio. Pois qualquer garanhão – e não seria eu quem estragaria essa tradição – trepa, mais para se vangloriar do que para provar a si mesmo que tem tesão e é bom de cama.
Pois estávamos eu e um velho parceiro de mesas de bar falando dessas coisas, quando ele empurrou com a mão direita a sua tulipa de chope para os arredores da minha e pousou a mão esquerda sobre meu braço, num movimento típico de quem quer fazer uma confidência.
Olhou para os lados, como quem procurasse uma dessas assombrações que, à miúde, saem dos sanitários dos restaurantes e, baixando a voz fez de meu ouvido esquerdo um pequeno estande, uma espécie de cubículo igual aqueles confessionários de igrejas católicas a dar com um pau:
- Garanhão, ando comendo a Marininha...
- A mulher do Milton Capenga?
- Shhh... Ela. Ela mesma.
- E daí, cara, qual é o problema?
- Daí que ele anda pra lá de desconfiado. Tenho medo que numa dessas, ele me pegue em flagrante.
- Grande coisa. O cara é manco. Ele é perneta, você sai correndo...
- E se ele for atleta paraolímpico?!?
MORAL DA HISTÓRIA – Se um lancezinho patife desses tem moral é aquela batida verdade popular: Quem tem... Tem medo.

NEURASTÊNICO

Quando eu me atacava das lombrigas, quando me dava na telha, ninguém era capaz de ser mais intragável do que eu.

Que maus bofes! Era como se eu tivesse brigado com o cara que inventou o circo, ou com o autor do carnaval, ou aquele que descobriu a alegria. Eu reclamava de tudo, de todos; por tudo, por nada. Era quando eu endurecia e perdia a ternura.

E nem precisava de motivo para ficar neurastênico. Bastava, por exemplo, não ter dinheiro no bolso. Pronto, lá estava eu de bronca com os deuses e todo mundo. Vejam só o tamanho da minha neurastenia: ficar irritado por falta de grana... Isso lá é motivo de irritação para um brasileiro que se preza? Porra, dinheiro é bosta! Qualquer ladrão tem.

Mas sei lá, eu me encanzinava, chutava o balde, a vaca e o pau da barraca só porque a mão, às vezes, era maior que o bolso. Besteira. Dinheiro é coisa de político. Pessoas nem sabem o que é isso.
Sabe duma? Mais que falta de dinheiro só duas coisas me estragavam o fígado, me deixavam doente: uma era estar sem trabalho, outra era estar trabalhando. Mas, como disse um santo fanático ao ver lá de cima a Terra girar: - O mundo é uma bola.
Pois não é que é? E rola.

Foi assim que um dia – desempregado e deixando a vida me rolar - me irritei e resolvi ser patrão de mim mesmo. Me empreguei a fundo e montei um daqueles trailers de hot dog, cheio de bossas americanizadas, posto que se assim não o fossem se chamariam reboques de cachorro-quente. Não mais abrasileirados que isso.

Irritado por não ter dinheiro, tomei uma graninha emprestada num desses bancos de intermediação de negócios de ocasião e investi na idéia de que todo mundo é chegado num lanche de beira de calçada.

Irritado pela humilhação de me endividar para trabalhar, avisei meia-cidade que no próximo fim de semana eu e minha banca de fast food estaríamos na batalha, ali na esquina da praça central.

Dito isto, dito e feito. Fui com tudo. Não foi ninguém.

Já noite alta, o telefone tilintou dentro do trailer. Era minha mãe querida:
- Garanhão, meu filho, como foi a estréia. O movimento foi bom?
- Uma bosta, mãe! Tô aqui parado, sozinho; sem nada pra fazer... Uma bosta!

Atendi ao apelo de seu condoído coração materno para que eu fosse descansar um pouco “que amanhã é outro dia”. Fui. Dormi irritado. Acordei e fui à luta- que “não podemos se entregar pros home, de jeito nenhum, amigo e companheiro”.

Por volta de sete, sete e pouco da manhã de sábado reabri aquela espécie de gazebo de inspiração ianque, santuário moderno  “dos melhores e mais baratos lanches da praça”.

Lá pelas dez da noite, o telefone tilintou em replay ao que sucedera no dia da malfadada estréia. Atendi:

- Pai?
- É. É o seu pai, meu filho. Como tá indo o negócio aí?..
- Uma bosta, pai! Isso aqui tá uma bosta!
- Não apareceu ninguém, Garanhão?
- Tá cheio de gente, pai. Uma bosta, não paro de trabalhar desde manhãzinha.
- Então tá bom, né filho?
- Bom, uma bosta! Amanhã mesmo vou passar esse negócio adiante...
- Mas, meu filho...
- Pai, se eu não passar adiante, fecho essa bosta pra sempre. Não sou burro nem nada pra trabalhar desse jeito!

MORAL DA HISTÓRIA – Os outros vícios empurram o ânimo; a irritação os atira para longe.

5 de jan. de 2012

Nomeação

Como consultor republicano de mídias persecutórias a governos que praticam a famigerada “estratégia de coalizão pela governabilidade”, não perco a menor chance de patrulhar esses focos de domínio popular que integram o plano de poder dos seguidores de Luiz Erário Lula da Silva e suas criaturas.
A estrutura estatal que forma a máquina governamental está minada por terceirizações. Carteirinha de partido aliado vale mais que qualquer diploma. Concurso é ferramenta do passado.
Cargo se preenche com cabo-eleitoral e apaniguados em geral. Ninguém precisa saber nada para ser nomeado para tudo.
Era um dia de palanque e o prefeito da cidade, por acaso do PT – o prefeito e a cidade – entregava medalhas de grande mérito a figuras ilustres da sua base aliada. Foi o justo momento para nomear Secretária Municipal de Ensino, uma professora primária, daquelas feitas nas coxas, sem graduação e sem instrução.
Pertinho daquele palco iluminado, eu pude escutar o rápido diálogo entre a professora e o politicóide. Percebi também o murmúrio de surpresa e indignação que a abrupta nomeação causara na turma do gargarejo.
Constrangida pela honraria, a mestra de ocasião, surpresa e acanhada sussurrou sincera para o prefeito:
- Prefeito, eu não tenho nenhum requisito que me faça merecer este cargo.
O raposão político, sorriu, deu-lhe um tapinha nas costas e, impassível e solene, iniciou um breve discurso para a nova secretária municipal:
- A professora, na realidade, está fora das exigências corriqueiras para o cargo que vai ocupar... mas ela tem muito mais qualidades que o cargo exige.
Assunto encerrado. Indicação consagrada. Nunca na história daquela cidade, a carteirinha partidária tinha valido tão mais do que um diploma de magistério.
MORAL DA HISTÓRIA – Não há quem resista a um carteiraço numa democracia em que é o voto é mais que um direito, uma obrigação.

Vitupério

Sempre gostei de mesas de bar. Dali saem coisas assim de repente que qualquer divã levaria de dez a quinze sessões para fazer brotar.

Eu sorvia minha vodca finlandesa com pedaços de laranja na casca, enquanto lia o jornal do dia e escutava o papo de política que dois velhos amigos pinguços exercitavam, naquela manhã já quase meio-dia.

Em dado momento, os ânimos se exaltaram. E os dois companheiros cientificamente álcoolpolitizados perderam as estribeiras e passaram a uma audível troca de gentilezas. O mais agressivo exclamava; o outro era duro també, porém mais reticente:

- Você é um imbecil!
- E você, um idiota...
- Pulha!
- Biltre...
- Calhorda!
- Papalvo...
- Mequetrefe!

Porra, mequetrefe?!? Aí lembrou petismo. O reticente, inspirou-se e diante daquela ofensa, não admitiu a pecha de vagabundo, tomou fôlego e despejou em cascata para acabar com o duelo verbal:

- Zé Dirceu! Delúbio! Lula!!!

Deu as costas e foi para o lado de lá do balcão falar de praia, churrasco, festas de fim de ano, numa roda mais calma e serena de companheiros de birita. Seu olhar revelava a empáfia dos vencedores. Mesmo que o duelo fosse só um vitupério

MORAL DA HISTÓRIA - Até mesmo entre dois amigos de copo, uma mesa de bar tem limites para as coisas do mundo politizado.

4 de jan. de 2012

Premonição

Por capricho do destino, estavam naquele mesmo vôo da Transbrasil de Brasília para Porto Alegre, com escala em São Paulo, Zé Dirceu, Nelson Jobim e Pedro Simon. A bem da verdade, diga-se que cada um deles entrou por seu turno e cada qual foi se encontrando com os outros pelo corredor da aeronave.

O mesmo corredor de passageiros comuns, por onde eu me acomodava com Silvinha, minha noiva de weekends nos Pampas. Embora com larga milhagem e velha macaquice em viagens aéreas, nunca deixei de sentir aquele certo friozinho no estômago a cada decolagem.

Muito mais perspicaz do que supersticioso, ronronei para a minha gatinha ruiva, já dona de seu assento ao lado da janela:

- É muito político para um só avião... Não deve ser a vez de todos deles baterem as botas.
- É pouco provável – filosofou Silvinha – esse vôo é seguro.

Eu já estava me aprumando para sentar-me a seu lado, quando um arrepio de premonição me cutucou a imaginação:

- Mas e se for a vez do Piloto?!?

Saí do avião com Silvinha e fui refazer o check-in. Viajamos menos de duas horas depois, pela Varig. Voo direto, sem baldeação em Congonhas. Chegamos a Porto Alegre na mesma hora em que chegaríamos pela Transbrasil.

Do saguão do aeroporto Salgado Filho, olhamos para o campo de pouso. Carros de bombeiro, ambulâncias e um grupo de paramédicos se movimentavam na cabeceira e às marginais da pista, voltados com uma enorme expectativa para o céu de brigadeiro do Rio Grande do Sul.

Um Boeing-737 com o prefixo e as cores da Transbrasil descia em velocidade bem acima do que ordenam os manuais para realizar o que seria uma aterrissagem de procedimento normal.

MORAL DA HISTÓRIA – A presunção de saber o futuro é uma espécie de rebeldia contra os deuses e uma competência louca que se transforma em prudência.

Alcoólatra

Aquele meu vizinho não podia beber. Toda vez que tomava um pileque ficava, digamos, dadivoso. Concedia. Principalmente para jovens e robustos mancebos.

Sua sina começou nas noites de sábado. No domingo remordia a ressaca desabafando ardilosamente para os amigos e toda a vizinhança:

- Tomei um porre de matar, ontem. Nem sei o que aconteceu comigo...

A cena se repetia todo fim de semana. Na segunda-feira era sempre a mesma ladainha:

- Sei lá o que foi que eu fiz... Caí de bêbado sábado à noite.

Com enorme rapidez os porres passaram a acontecer às terças  e quintas-feiras também. E logo se sucediam às sextas e domingos, fechando a semana.

Um dia, ele veio me falar de suas contínuas crises de amnésia:

- Pô Garanhão, não sei o que se passa comigo...
- Mas, eu sei. Você virou alcoólatra!

MORAL DA HISTÓRIA – É prudente quando a emenda sai pior que o soneto, que a gente a remende, caso contrário então que a gente a dissimule.

Alfajores no ar

Agente secreto do Departamento Internacional de Combate a Presidentes Analfabetos (DiCopa), eu viajava disfarçado de turista incidental rumo a Amsterdã. A meu lado, numa estrinicada poltrona de classe executiva, uma lourinha estagiária de jornalismo esportivo curtia o seu primeiro voo internacional.

Embarcáramos - cada um a seu modo e seu lugar - em Guarulhos, num voo da carcomida Alitália. Coube-lhe o lugar a meu lado. Que bom, foi agraciada com a janela.

Ao natural e com o espírito aguçado dos espiões internacionais, fiquei sabendo assim como quem não quer nada, que a garota viajava para cobrir um Mundial de Hipismo, em Heindhoven, na Holanda.

Comme d'habitude em aviões de carreira, reclinei-me para encerrar o papo fingindo que adormecia - mantendo-a, no entanto e de soslaio, com um olho no padre e outro na missa, como faz bem aos que trabalham em sigilo.

Concluídos os procedimentos para decolagem, as aeromoças já circulavam lépidas e faceiras pelos corredores da aeronave. Distribuíam jornais, revistas, leituras de bordo e uma coisinha lá que outra: mantas térmicas, travesseirinhos e agradinhos assim.

Dentre tantos mimos, a jovem estagiária de primeira viagem ganhou o que identificou logo como dois minúsculos alfajores. Retirou-os da embalagem de papel celofane e prontamente e sem cerimônia colocou-os na boca.

Na primeira mordida sentiu que precisava ter estômago para engolir aqueles achocolatados holandeses. Não conseguiu digerir aquilo.

Disfarçadamente retirou os alfajores da boca. Sem se deixar notar, examinou-os atentamente. Corou. Dissimulada, guardou-os no bolso da jaqueta de reportagem que estava estreando.

Só depois de meia hora de voo é que voltou a usá-los. Aí, sim, de maneira correta. Colocou um em cada lado de sua linda cabecinha, no lugar para o qual aqueles pequenos artefatos tinham sido criados com a moderna tecnologia que os fones de ouvido ostentam nessas linhas aéreas internacionais. Seu sabor era péssimo, mas para ouvir aqueles alfajores eram ótimos.

MORAL DA HISTÓRIA - Em qualquer ocasião, mesmo sendo uma loirinha estagiária de jornalismo, todo apressado come cru.

3 de jan. de 2012

Eu, O Detetive

Eu iniciava minha vidinha de repórter. Na verdade, repórter, repórter mesmo eu nunca fui. Perguntava por perguntar, nunca furunguei as fontes. Sempre fui mais de salas de redação, hoje virtuais e sonoplasticamente menos poluídas.

E, porque começava e tinha jeito de foca, fui escalado para fazer um plantão policial como repórter da sucursal pelotense do tablóide Zero Hora. Fiz. Foi o único de minha carreira pelos caminhos da notícia.

No meio da noite pegaram um suspeito. Submeteram-no a uma sessão de toma lá, toma de novo, sem nenhum dá cá. Eu saí às carreiras. Mal deixei o recinto da pauleira e granjeei a antipatia da soldadesca. Nunca mais fiz polícia.

Não fiz, como repórter. Mas o crime e o castigo me fascinavam. Na faculdade de Direito fui colega de muitos agentes policiais. Botei na cabeça que tinha pendores detetivescos. Encasquetei que era um bom detetive. Desses, tipo Irving Le Roy, Sherlock Holmes, Al Wheeler – feras de almanaques policiais.

Deu-se então um crime escabroso na região. Um casal foi enterrado nas dunas do Cassino, praia de Rio Grande, cidade que é fim do mapa dos gaúchos. A polícia já não sabia o que fazer para desvendar o hediondo assassinato.

Ninguém imaginava quem poderia ser o criminoso. Pronto, um mistério de verdade para aguçar minhas aptidões de investigador. Não tive dúvidas, logo me comprometi a colaborar com as investigações policiais. De caderninho na mão, cachimbo na boca e até uma estapafúrdia luneta fui à luta.

Daí a uma semana, telefonei para a delegacia e avisei que estava na casa do assassino. Dei o endereço e fiquei à espera. Os policiais ficaram de queixo caído quando o bandido, meio no porre, se entregou sem qualquer resistência.

Era o Vicente Beleza, um cara conhecido dos Boletins de Ocorrência. Viciado em carteado, corrida de cavalos e bilhar, ele vivia aplicando pequenos golpes. Escondia coringa nas mangas, jogava no bicho, apostava em pules viciadas.

Mas ninguém diria que ele seria capaz de matar alguém. Muito menos um casal. Muito menos enterrá-los nas dunas do Cassino. Muito menos isso.

A repercussão foi um estouro. Deu capa de jornalões, de jornais locais e também dos dois tablóides de Porto Alegre. Deu mídia de montão. Rádios, TVs, revistas. Minha carreira de detetive estava definitivamente consolidada.

Quando os holofotes da mídia me deram o devido descanso, fui jogar sinuca com os parceiros de sempre no Bataclã – casa de jogatina que reunia a nata e a reborréia da cidade.

Noite altíssima, fui pagar a sopa da madrugada no Restaurante Gago, refúgio e sindicato noturno dos sócios das mesmas dores do mundo. Era o meu prêmio de consolação ao Sargento Morcilha, meu pato nas mesas de pano verde e caçapas recheadas pelo soldo do meu parceiro, péssimo jogador de snooker.

Ele, como todo mundo – de repórteres a leitores; de inspetores a delegados – queria saber que pista, que indício, que evidência eu tinha seguido para elucidar o crime e chegar ao assassino. Com pena por ter depenado uma vez mais o meu freguês de caderno, eu lhe matei a curiosidade.

- Vou te dizer, Morcilha. Mas come em tranca.
- Sou um túmulo, Garanhão.
- Olha, Morcilha, isso é segredo profissional.
- Juro por Deus e uma batata frita que o assunto morre aqui. Pra sempre, juro.
- Foi barbada. Eu tava aqui no Gago, naquela noite. Aí, o Beleza se chegou e me filou uma birita. Tomou todas. Então se embebedou e deu o serviço.
- Como assim, deu o serviço assim, na maior?
- Ele me disse que tinha sido ele. Que andava comendo a mulher do cara. O cara descobriu. E ele, de medo, matou o corno e depois apagou a mulher.
- Fácil. Fácil...

Morcilha olhou para mim e sentindo no meu olhar o perigo que a inconfidência representava agora para ele, logo se apressou a me tranqüilizar:

- Fácil, Garanhão. Mas eu já me esqueci.

Depois desse caso deixei a vida de detetive particular. Fui ser e fazer o que mais gosto de ser e fazer na vida... Descubra. A gente sempre deixa uma pista.

MORAL DA HISTÓRIA – Ninguém é tão apegado a um segredo quanto aquele que não tem intenção de guardá-lo.

A Tosse

Eu já estava na melhoridade. Bolas, o Garanhão de Pelotas não é Lula nem Sarney para ser imortal ou imune aos séculos. Por isso e pela idade, eu gozava das liberdades que o tempo nos empresta quando já se colecionou aniversários sem conta.

Flatulência, por exemplo. Flatulência, para os idosos, é uma coisa que dá e passa. Com a maior naturalidade. A qualquer momento, em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias.

Claro que, diante de eventuais visitas, na frente dos filhos, de convidados, necessário se faz tomar a devida precaução. E eu tomava cuidados, ora. Principalmente com os ruídos. Os odores eram disfarçados com olhares severos e denunciadores lançados maldosa e cinicamente à vitima mais próxima. O culpado era sempre aquele outro ali.

Para o som, eu tinha, digamos, uma boa saída: tossia alto e forte no exato momento do execrável pum.  E tantas vezes tossia quantos fossem os gases espúrios expelidos

E dando-me por satisfeito, eu me habituara a disfarçar meus mistérios. Toda noite, estivesse quem estivesse na sala, na cozinha, no carro, eu promovia um festival de tosse. E assim foi por muito tempo, até que uma das minhas incontáveis filhas de outros tantos casamentos, resolveu me repreeender na frente do seu namorado em plena sala de estar:

- Pai, pára de tossir. Essa sua tosse infestou a sala. Ela vai acabar nos matando!

MORAL DA HISTÓRIA - Na vida até o que se ouve pode falar mais alto do que se pensa.

2 de jan. de 2012

O Corno

Encarnar o Garanhão de Pelotas leva o sujeito a certas desventuras. O que se há de fazer? São os cavacos do ofício. Pois, naquela noite cheguei mais cedo em casa.

Pra quê?!? Dei de cara com a minha mulher de então deitada na nossa cama com um cara que não tinha nada a ver comigo.

Saquei o revólver – sempre carrego um comigo para essas ocasiões – e já ia metendo bala nos dois, quando parei para pensar.

Em frações de eternos segundos passei os últimos tempos do filme da minha vida de casado. Tive que reconhecer: minha esposa já não me pedia dinheiro para comprar carne, nem para comprar vestidos, sapatos, jóias, ainda que andasse sempre no it da moda.

E fui vendo: os meninos saíram da escola pública para a privada. Minha mulher me ajudou a trocar de carro; as compras no supermercado nunca foram tão fartas; as contas de luz, água, telefone, internet, celular, cartão de crédito, estavam todas em dia.

Pensei melhor. Guardei a arma na cintura e fui saindo de fininho. Pé ante pé que é melhor para uma boa análise de tudo que nos diz respeito que é bom e todo mundo gosta. E voltei pra segunda sessão do cinema da esquina que já ia começar. Voltei meditando com profundo discernimento:

- Esse idiota paga o aluguel, o supermercado, a escola dos guris, água, luz, telefone, carro, shopping, todas as despesas da minha casa e eu ainda vou pra cama com a minha esposa todas as noites...

Cheguei à bilheteria. No momento preciso de pagar o ingresso, pensei em voz alta, surpreendendo a garota atrás do guichê:

- Pô, o corno é ele!

Estupefata, ela não entendeu nada. Certamente pensou que eu talvez já soubesse o fim do filme.

MORAL DA HISTÓRIA – Aquele que se põe em guarda contra quem o trái é, cabalmente, aquele em cujo favor os traidores cometeram a traição.

O Ébrio! O Ébrio!

Lá pelo início do mundo, nos áureos tempos do auditório da Rádio Cultura de Pelotas, Victor Jascò - um cantor de enorme popularidade local, dava um show de interpretação para uma platéia fanatizada.

Cantava e encantava com seu potente e afinado vozeirão os sucessos de Cauby Peixoto, Francisco Carlos, Jorge Goulart e outros ídolos da incrível e carioca rádio Nacional que ricochetava para os brasís atentos o roteiro musical das chanchadas da Atlântida.

Tanto era aplaudido que Victor Jacó ficou exibido, se entusiasmou e liberou geral:

- Podem pedir o que quiserem ouvir...

Como aprendiz de sonosplasta, eu sabia que Jacó não tinha o dó de dpeito nbecessário para algumas canções da época. Como eu não perdia nenhuma audição dominical da emissora mais pontente do interland gaúcho, lá estava eu na turma do gargarejo. Não resisti à tentação de armar uma boa pra cima do cantor mais popular da casa e, no meio do vozerio ensandecido das macacas de auditório, aprontei pra cima dele pedindo a plenos pulmões:

- Canta O Ébrio! O Ébrio, canta O Ébrio!

Victor Jacó, sentiu os cutupicos. Virou-se para o Jazz Estrela e disse para o maestro, fora do microfone:

- Isso é coisa do Garanhão... Segue o roteiro. Toca Blue Gardenia.

E, aos primeiros acordes de mais um hit parade, me fuzilou com o olhar, enquanto voltava a encantar as moçoilas fanáticas deixando Vicente Celestino pra lá.

MORAL DA HISTÓRIA - O calor da emoção não pode ser tanto que te faça oferecer aquilo que não tens.

O Sovina

Estancieiro conhecido por seu sucesso, seu dinheiro e sua sovinice, o cordial pagador de cafezinho no Aquário, cafeteria das gabolices citadinas, era outra pessoa, bem outra, na lida diária da administração de suas fazendas na zona rural de Pelotas.

Como seu convidado, eu conversava com ele de tudo um pouco ali na sala de uma suas estâncias, quando bateram na porta. Era o Seu Malaquias, capataz de respeito e confiança.

Ele entrou e respeitosamente com o chapéu nas mãos coladas ao peito, nos cumprimentou e, de imediato, foi dizendo ao patrão com voz melindrada:

- Patrão preciso de R$ 50 pra comprar remédio...
- Não tenho...
- ...O dinheiro é pras vacas, patrão.
- ...Não tenho trocado. Pega R$ 100 e compra o que for preciso. Traz o troco.

MORAL DA HISTÓRIA – Patrão sovina fica doente quando lhe pedem dinheiro. A menos que seja para tratar de negócios agropeculiares.

O Resmungão

Fernandinho, o Conde Xixi, era um dos pavios mais curtos da minha patota dos Anos-50. Tinha sempre um palavrão na ponta língua. Seu mau-humor servia para todas as ocasiões.

Estava de mal com mundo em qualquer situação. Pró ou contra. Não era bom e batuta, mas era um bom companheiro. Parceiro para o que desse e viesse. Mas neurastênico a dar com um pau. Para ele, Sal de Fruta Eno era refresco.

Sei do seu pessimismo crônico porque a gente habitava o mesmo cômodo de uma república estudantil. Naquele dia esplendoroso de verão, Fernandinho levantou-se do seu beliche, lá pelas oito horas de um novo amanhecer. Abriu a janela que dava para o jardim do antigo e respeitável prédio, nas cercanias da universidade e encontrou-se com a vida.

Inspirou profundamente e espreguiçou-se com enorme e calculada lentidão. E aí, eu o assisti pensando em voz alta:

- Que dia bonito!

Nem tive tempo de me surpreender com o seu rasgo de otimismo e bom humor. Ele completou sem tomar fôlego:

- É, mas isso não vai durar muito... Que merda de dia bonito!

MORAL DA HISTÓRIA – Para um pessimista ver a vida com bons olhos é coisa de hipocondríaco.