Os peloteiros, de tal forma viajaram pelo Atlântico, rumo ao Velho Continente que nem chegaram a notar o processo de evolução das rodovias.
Os charqueadores faturavam seu tempo entre o refinamento de suas extensões pelotárias e a arte de salgar o boi sob o calor tropical do sol do Sul.
Tanto encheram o bestunto de carne que acabaram por gerar a mais consagrada leva de pelogays do ponto final do Brasil. Ou inicial. Há controvérsias. Isso se verifica logo adiante.
Enquanto corria a barca, as primeiras cicatrículas de multinacionais já pintavam e bordavam. Os caras que charqueavam se confinaram em suas estâncias embalados nos berços esplêndidos da fama.
Aí, os Anglos, Wilsons Sons, White Martins & genéricos & similares deitaram e rolaram. Pataca aos montes nas guaiacas, os pioneiros se plantaram às margens plácidas dos caudais que banhavam a Província de São Pedro.
Os de casa comeram mosca. Abriram apenas um lado da janela e só conseguiram vislumbrar metade do horizonte. Quando o outro postigo foi escancarado, os alienígenas já eram donos e senhores da arte e engenho do mercado industrial do couro e da carne.
A vaca foi probrejo. Até parece que o Pinto Martins se mandou lá do Ceará que não tem disso, não - só para virar nome de rua. O que sobrou para os nativos foi a formação requintada dos que viraram herdeiros de coisa nenhuma.
Só mesmo o velho ar de nobreza, conquistado nas faculdades de além mar, salvou a pátria. A juventude que aquela brisa cantava sabia conversar, ostentava boas maneiras, tinha jeito de lorde, modismos de diplomacia.
Terminaram, por isso mesmo, como meros cajetilhas das empresas que nasceram da madorna estéril e descuidada dos patrões saladeristas.
Os velhos foram esticando as canelas, as terras e as fortunas foram encolhendo. E assim se foi solapando o patrimônio geral.
Nem é bom falar no funeral do sólido Banco Pelotense sacanagem da grossa aplicada com boa conversa fiada para cima de Getúlio Vargas - o Simpático Ditador, para dar nascimento e vida ao que hoje é o Banco do Estado do Rio Grande do Sul, codinome Banrisul.
O que ficou, para os que ficaram em Pelotas, foi o tal caminho da comercialização, da intermediação de negócios. Pelotas, a Princesa do Sul, foi coroada com a honraria de ser uma vocacionada e prestimosa prestadora de serviços.
Isso, no linguajar de Zés Dirceus e Renans, lá pelos corredores do Congresso - grande casa de tolerância nacional, equivaleria à alcunha de lobista.
Com a prática do rufianismo da produtividade regional, a cidade virou atravessadora, entreposto de transas econômicas da Zona Sul, mandando o que pintasse de bom, bonito e barato para o resto do país.
Então foi que se soube, já haviam estradas da mais alta trafegabilidade. O Gigante Adormecido, já desperto e mais esperto, havia descoberto Mário Andreazza e o progresso regurgitava pelas estradas afora, mais novas do que modernas.
Afinal, as rodovias. Até que enfim, a proximidade direta com o país inteiro. Pelotas descobria o Brasil. O caminho do futuro. E da fama também.
Acontece que, além dos frutos da terra promissora, os valentes motoristas carregavam também suas vivências; contavam suas venturas, aventuras e desventuras. E, com tanta agilidade quanto a pressa lhes cobrava, transportavam o que viviam na simpática e hospitaleira cidade-rolha do sul do Sul. Foi assim que, de leve, começou a se espalhar a reputação da singela capital da Costa Doce.
Eis que, sabe lá quando, um gringalhão de Caxias do Sul, já com dois dias de estrada nas costas, parou à margem da estrada o seu possante caminhão. Ali pela Ponte do Retiro encostou devagarinho e, contornando um arbusto, libertou seu enorme penduricalho com balagandans e tudo mais à mostra, para sentir-se mais à vontade.
Já soprava um vento fresco - que os inventores desse velho causo chamariam de brisa - tipo assim arremedo de Minuano, quando o apertado camioneiro despejou seu aguaceiro. Foi em pleno jato que a desdita se desenhou: eis que passa um marimbondo de fogo e, maldita atração animal, desloca-se no seu voar e pousa na ponta do bicho.
Sem fastio, senta a pua bem em cima do morangão. O gringo, de imediato, promove o interregno e lasca uma tapona no mordedor. Lá se foi um marimbondo que, por decurso de voo, acabou selando a sorte de seu intempestivo final.
Para matar a besta-fera, o urinante se machucou. Além do ferrão atroz, a bofetada que o magoou foi tão forte que o artefato e as balacochetas se desmilinguiram. O urro que soltou ainda ecoava pelas colinas, quando ele guardou aquele enorme dedo sem osso que agora roliço e inchado não lhe cabia inteiro nas duas mãos.
Agarrou-se ao volante ecom cara de tarado deu máquina na carreta e comeu a estrada. Coisa de cinco minutos, nem isso, vislumbrou a cidade. Pelotas aparecia, imponente e fagueira, com ares de soberana que conquista forasteiros.
Seus olhos bateram num letreiro luminoso que anunciava o Sanatório Veloso. Acelerou, entrou pelo pátio de estacionamento e, como um possesso, nem desligou o motor, correu para o Pronto Socorro. Pasou às carreiras pela enfermeira e entrou na sala do médico de plantão:
- Ai, doutor, num guento mais. Pelamordedeus, me atenda duma vez!
O médico, bem-parecido, não teve tempo de nada. O chofer foi logo puxando o pratilevas imenso que, fruto da desgraça, agora estava maior do que nuncanessepaís, nem mesmo depois de Lula. Se, por dotes da bendita natureza já media mais de vinte centímetros, agora po acidente, passava fácil dos trinta. Era um protótipo balzaqueano.
O doutor, muito jeitoso, acalmou o im/paciente e conseguiu, com esforço, acomodá-lo na mesa. O gringo desesperado com aquela tranca na mão, rugiu sem-cerimônia:
- O que me dá pra isso, doutor?
- Casa, comida, roupa lavada e tudo mais que você quiser, meu querido.
Porra! - Bradará você - Toda essa volta só pra contar essa piada suja, velha e surrada?!?
É que, se você não sabe, esse foi um dos casos pioneiros que começaram a correr o eixo Pelotas-Resto do Mundo, forjando a fama da galante Pelotas dos bons tempos. Foi assim, o homem saiu curado porque o médico era entendido , mas o caso viajou muito e até ficou manjado pelas rotas do crescimento, pela estrada da produção, pelos confins do Brasil.
É coisa de domínio público, com direitos reservados ao folclore do admirável mundo alegre da Cidade dos Alimentos - outro slogan que, na verdade, é quase um ato falho. Cidade dos Alimentos é coisa para ser comida.
Do marimbondo safado que mordiscou aquela chavasca, ninguém jamais disse que era uma bicha louca, mas a Princesa do Sul que acolheu o esculhambado acabou pegando a fama que hoje a deita na cama, só por causa de uma picadura.
O falar macio e rendilhado que as ondas do Atlântico Sul trouxeram das civilzações européias, acabou banhando o território nacional pelas sendas do progresso que as estradas desenharam comas pinceladas de Andreazza no mapa do Brasil.
Não tivesse pintado o desvario construtivo andreazzino nessa história e talvez Pelotas fosse famosa, apenas e tão somente, pelos doces que sabe dar. Na verdade, ninguém ganha a reputação, senão pela própria culpa.