Então, na minha mais dolente pele do Garanhão de Pelotas, eu tinha meu sono reparador dos domingos passados em "minha pátria pequena que tenho no Sul" afrontado pontual e torturantemente, às seis horas da madrugada, pelo badalar insistente e penetrante dos sinos da catedral.
Que diabo, essas coisas feitas em nome de Deus! Sempre aos domingos. Logo às seis da manhã. Aqueles carrilhões desabavam domingueiramente sobre o meu cérebro e tonitruantes atingiam meus nervos. Inclusive aquele que entumecia ao sabor de belos e eróticos sonhos, no mais tradicional tesão de xixi de todos os frágeis e suscetíveis seres humanos. Bolas, o Garanhão de Pelotas também é gente!
E, como todo guerreiro precisa descansar. Minha terra, longe do mundo, era o meu paraíso dominical para relaxar e gozar. E aquele sino! E aqueles badalos! E eu nem sequer queria saber por quem os sinos dobravam, cacete!
Naquele domingo, o som abusivo e retumbante não deu treguas ao merecido descanso de mais uma semana de reportagens factuais e aflitas pelo conflito na Síria que reparti com dois jornalistas franceses que trabalhavam em Homs.
Com muito esforço sobrehumano, sem nenhum aceno dos itamaratecas de lá ou de cá, consegui deixar o país e acompanhei - sem um arranhão sequer - os dois companheiros de batalha levando-os para o Líbano. Porra! Sem um arranhão sequer, porque jornalista tem mais é que fazer notícia; jamais tem que ser notícia!
De lá, William Daniels e Edith Bouvier, ferida em um ataque das forças de segurança que matou dois jornalistas, foram enviados para a região de Bekaa Valley, norte do Líbano, e retornaram à França. Eu nem cheguei a vir para o Brasil; vim direto para Pelotas que, eu já disse, é a "minha pátria pequena".
Pois então sucede que os sinos rimbombantes da catedral não me deixaram dormir sossegado. Foi a gota d'água. Aqueles padres não tinham um pingo de verdadeira noção comunitária. Acordei para sempre.
Decidi que meus domingos, a partir de então seriam relaxados e gozados na zona rural. De Pelotas é claro. Naquela já distante segunda-feira, atrasando meu retorno ao Oriente Médio, tratei de comprar uma chácara na Cascata - uma região linda de se viver!
Foi vapt-vupt. Comprei logo uma, com tudo que tinha direito: mansão, casa de capataz, tambo para ordenhar seis vacas, piscina... Veio até caseiro com família e filharada no negócio.
Viajei logo para o outro lado do mundo. Fiquei por lá duas exaustivas semanas. Cobri cinco batalhas, dois atentados a embaixadas americanas e francesas respectivamente e, afinal, me concedi outro final de semana, em minha nova casa rural.
Naquele velho sábado à noite cheguei exausto. Joguei tudo para um canto da enorme sala com cozinha americana e lareira, fui para a banheira Jacuzzi que já estava devidamente instalada como sugeri ao corretor do imóvel sob os olhares de minhas secretárias e me dediquei a relaxar e gozar, com minhas três namoradinhas, ex-guerrilheiras urbanas e grandes batalhadoras de minhas múltiplas alcovas.
Peguei no sono por volta das três e meia da madrugada. Grande madrugada. Sabe como é, quando a saudade bate, é fogo. Com ex-combatentes, nem se fala. E então e, até que enfim, joguei-as para os lados e me entreguei aos aconchegantes braços de Morfeu.
Às cinco da manhã meu cérebro explodiu: que tortura aquele barulho. Que inferno! Acordei com os sons tonitruantes e repetitivos que me pinicavam a alma e acabavam com o sonho. E não era coisa dos deuses... Saí pela manhã ainda noite como um sonâmbulo à cata de solução.
Ao meio-dia daquele almoço de domingo naquela paradisíaca chácara na Cascata, eu garanti para sempre os meus sonos reparadores de sábado em meu torrão natal. Tomei dois pratos fundos da substancial canja feita com o galo da madrugada.
Quando peguei meu helicóptero, rumo a Porto Alegre, de onde partiria para Cumbica rumo a Londres, eu já sabia por quem os sinos dobram.
RODAPÉ - Quando as forças do universo se juntam para atormentar seus melhores sonhos, não interessa por quem os sinos dobram... Agora, se o galo cantar, coloque-o na panela e faça com ele o que ele faz com as galinhas: coma-o!