Tamerda! Eu também sou avô! Sou gente, apesar de Garanhão de Pelotas! Gente que sente. Por exemplo, quer saber? Meu neto, primeiro e único, se forma na segunda-feira, na UnB, em Brasília; diploma-se com louvor em Publicidade e Propaganda. Publicitário, enfim, que nem seu avô!
E então, no domingo vai ter festa aqui no nosso solar. Churrasco de carnes brancas e vermelhas; mal-passadas e ao ponto; de costela gorda e picanha maturada; de beliscatessens a chimarrão e muita, muita caipirinha, acompanhada de "cacetinhos" recheados de cebola, tomate e linguiça de porco e de rês cortada a facão.
E aí, nessas vésperas, eu telefono então para um velho e bom amigo de bancos escolares, hoje médico dos melhores - daqueles que já não fazem mais - e lhe conto a boa nova: meu neto vai sair ao vô, levará a vida numa boa, comendo de tudo e comendo todas; criando slogans e lançando marcas de fazer sucesso e ganhando as graças de vendedores e compradores, de homens e mulheres e de todos e tudo mais, comendo cada um, muito juntos num swing sociocomercial sem tamanho e sem nenhum prazo de validade.
Foi quando ele, o meu amigão de infância, me disse, com a alegria comedida e saudável dos bons médicos que, claro, estaria na festa, com muito prazer, muita birita, comes e bebes e coisa e tal, comme d'habitude. Mas... Mas que eu esperasse só um pouquinho que ele logo me confirmaria a vinda ao ágape, ao regabofe, à churrascada, pô! Ou não.
E mais não disse, porque mais não lhe perguntei. Dois dias se foram. E hoje, sexta, antevéspera da festa, ele me liga. E eu vou ao celular. Ele diz que não. Que não viria à festa de formatura do meu neto.
- Fala, guri medonho... - disse-lhe eu.- Garanha, escutaqui... Talvez eu não possa passar por aí no domingo...
- Tá bom, qual é a desculpa da vez?
- Nada demais. É que, na segunda eu vou me operar.
- Quiéisso Guri, te deu nó nas tripas, água no joelho, assim de repente?
- Não. Besterinha: um câncer na próstata.
- Te explica, melhor, cara. Eu não entendendo nada de proctoculogia...
- Nem precisa. Deixa que eu te diga: apareceu um câncer nas reberbelas das interlas do meu esfíncter.
- Que bosta, cara. Isso lá é jeito de escapar de um domingo? A carne é boa, a alma é fraca, a bebida é fortíssima...
- Sei, sei, mas não é desculpa, não. Tô mesmo com câncer na próstata. Era pra ter me operado ontem, mas meu médico foi pros Estados Unidos e só volta manhã.
- Estados Unidos... Nessa hora?!?
- Fica frio, cara. O real tá mais forte que o dólar lá fora. A hora é esta...
- Uma porra que a hora é esta!.. Meu neto tá se formando. A banda de rock bem-comportado dele vai até tocar aqui no solar, neste domingo... E outra coisa, carinha, há 30 anos que eu faço massagem entre o escroto e as pregas nos meus banhos diários... E não tenho isso. E olha que eu não sou médico, amigão.
- Pois eu não fiz. Tô com o bicho-da-seda no buzafan.
- Tá, guri. Tá. ... Deixa eu te dizer uma coisa. Nem sei se quero mais que você venha ao churrasco aqui em casa, ou que o seu médico americanizado marque a cirurgia pra segunda-feira...
- Você decide... Mas brigado pela dúvida.
- Tá. Quero que você se opere na segunda, de manhã. À tarde estarei aí, no hospital. Vou pra marcar o churrasco de domingo da outra semana. Vamos comemorar os 10 ou 15% de temporada por esse mundão que nos espera.
- Combinado. Segunda-feira, à tarde, te aguardo por lá. No outro domingo, vamos encher o cu de carne e celebrar a vida bebendo estrelas com dom Pérrigón...
- Champanhe uma porra! O Chivas Reagal é por minha conta.
E, porque hoje é sábado e há a perspectiva de domingo, desliguei o celular. Vou ao churrasco de domingo, ao hospital na tarde de segunda-feira e à festa de entrega do diploma a meu neto nessa mesma segunda e, no domingo que vem, com o meu amigo, vou celebrar a vida de verdade.
MORAL DA HISTÓRIA - Câncer é uma coisa que contagia nessa República dos Calamares. Pega até os nossos amigos de infância. Mas não mata a identificação desinteressada e sincera de dois amigos que atravessaram a vida como se a prórpía vida soubesse envelhecer.