E então vos digo, lá vinha eu num daqueles dias aziagos de Garanhão de Pelotas em que, por alguma infausta interferência dos deuses da vida, naquele tempo eu era o chefe de gabinete do chefe do chefe da Casa Covil da quadrilha dos propineiros.
Vinha eu, em verdade vos digo, adentrando a sala do Capeta de i tutti capi, meio contrariado de tanto receber ordens de um lhegalhé analfa, filho da mãe que nasceu tal qual a ele, sem tirar nem pôr.
Vinha eu, atentai meus nobres companheiros, engasgado com meu servilismo, mantido e engolido apenas pelo salário nababesco e algumas comissões decorrentes de consultas concedidas por baixo dos panos, mercê de minha proximidade com o que se pode cognominar de O Filho do Brasil.
Vinha eu, meus diletos bons e batutas, arrastando os últimos latidos de minha fidelidade canina, em direção ao grande mestre da República dos Calamares, para oferecer-lhe meus ouvidos à guisa de penicos republicanos.
Como já vos ensinou certa feita o divino condutor dessa democracia meiaboca, "a gente temos duas orelhas: uma pros aplauso, outra pros apupo"...
Pois, este Garanhão de Pelotas que vos fala, estava naqueles dias calamitosos em que a orelha-urinol está transbordando. Ao me aproximar da douta e honorável figura, só tive ouvidos para a voz rouca das ruas que ecoava no terceiro andar do Palácio:
- Aêê, companheiro Garanhão, tu já chegou?
- Não, meu divino mestre e companheiro, eu ainda tô lá na esquina...
O que era um riso hipócrita de primeiro cumprimento matinal desferido por um dono da casa para seu subalterno cotidiano, transformou-se num esgar prontamente vingativo. Eu conhecia bem aquele feitio de boca quando o Cara te devorava com os olhos. E veio a segunda pergunta imbecil do dia:
- O que é isso, companheiro?
- Isso é o seguinte, tô de saco cheio.
- Ei, eu sou o presidente dessa República! Que modos são esses? Não foi assim que eu ensinei vocês!
- Eu tô de saco cheio!
- Isso é jeito de me responder?!?
- É. Quando me fazem uma pergunta burra, eu respondo como um burro!
- Como assim?
- É só pro burro não pensar que é inteligente.
E fui dando meia volta. Não sem antes lhe dizer por cima dos ombros:
- Quero o meu boné da CUT que me pariu que eu já vou. Nunca mais me verás tu, cara de tatu!
E saí porta afora. Ao passar pelos seguranças avisei discursando de modo a ribombar o meu dia de fúria pela Rádio Corredor de portas já entreabertas:
- Diz pro chefe dos propineiros que eu tô de mal com o Capeta. Mas já vou avisando: sou um túmulo. Um arquivo-vivo. Não adianta me queimar! Se eu virar arquivo-morto, a imprensa daqui e a mídia internacional vão receber todos os vídeos e as gravações que espalhei por aí. Sou o Garanhão de Pelotas e não de Santo André.
MORAL DA HISÓRIA - É delicioso ter um ataque de loucura assim por pouco tempo, de repente e de pequena duração: é quando se dá por certo que nada precisa ser politicamente correto nesta vida. Muito menos num dia de fúria.