Eu já fui cabareteiro. Desde os tempos de frangote que eu gazeava as aulas da tarde e me metia nas pensões. As pensões aquelas, antigas, lugar de viração das gurias que vinham da Colônia para conhecer a vida na cidade e acabavam se promovendo de empregadinhas domésticas a mulheres de vida fácil.
Claro que eu não era o Gazeteiro Solitário. Tinha uma turma boa que juntava a mesada e os dinheiros que a gente fazia com a venda de Gibis na porta do cinema e que me estimulava a ser o Garanhão Mirim de Pelotas, muito mais do que ir às aulas de canto orfeônico, álgebra e latim.
Nossas línguas eram muito menos mortas. Pelo menos de três em três semanas, tinha matinê de fuque-fuque da nossa patota pelos bordéis vespertinos, já que os noturnos tinham as portas fechadas para a pirralhada. Mandinho não entrava.
Era bom. A gente batia educadamente à porta da pensão, usando o código de sempre: tantarantantan duas vezes e um tantarantan isolado. Pronto, era um verdadeiro “abre-te Sésamo” para o início de mais uma jornada das nossas 1001 noites às tardes.
E agente bebia cerveja, comia pipoquinha e beijava as moçoilas com cheiro de colchão e gosto de amendoim torradinho. A gente gostava, ué. E já sabia, era só bater e entrar que elas já estavam nos esperando.
Ás vezes, não é que a gente dava com a cara na porta é que elas tinham saído para fazer compras. Blusinhas, vestidos, sapatinhos novos e até coisas do armazém da esquina: lata de banha, arroz, feijão.
Massa não. Massa, elas mesmas faziam com aqueles rolos que as esposas usavam para ameaçar maridos farristas. Elas eram prendadas. Tá pensando o quê? Tinha uma, Mariana, que fazia até talharim. Ficava uma beleza.
Nós cansamos de comer, nas nossas velhas tardes, talharim na manteiga e alho, aos copos de vinho da Colônia que elas traziam, sempre que iam visitar os pais nas fazendolas rurais onde tinham nascido.
Nessas tardes de compras, a gente ficava esperando. Escolhia uma mesa redonda que coubesse a nossa turma, abríamos o frigorífico e nos servíamos de cerveja. Tudo na maior confiança. A gente já era da casa. Nunca bebemos um gole que não se pagasse por ele. O Brasil era honesto naquele tempo. Faz tempo isso. Muito tempo.
Pois naquela tarde, lá estávamos nós. Batemos na porta do que se chamava de lupanar. Não nos atenderam. Sem perda de tempo, levantamos o capacho que tinha um coração desenhado espetado por uma flecha de Cupido e superposto à saudação em relevo: “Seja Bem-Vindo”.
Pegamos a chave no inimaginável esconderijo e fomos nos adonando. Éramos seis naquela tarde antiga. O nosso time estava assim escalado: Garanhão de Pelotas, Tio Banda, Pezão, Maionese, Quimeras e um convidado, El Cantor, candidato a integrar-se à patota.
Quimeras era um baita amigão. Inteligente, bom de bola, bom de briga, piadista incurável, espírito alegre, tão alegre que era viado . Viado, porque naquela época ninguém tinha ouvido ninguém chamar ninguém de gay. Viado, e não veado. Viado, Quimeras era fresco assumido e bem-resolvido.
Tinha seus casos com todo mundo. Com quem bem ele quisesse. Menos com a nossa turma. Ali, ele era só amigo. Amigo mesmo. Gente boa. Não namorava ninguém, pois a gente entendia Quimeras, mas não entrava na dele. Nem nele.
E, então, dito isto, voltamos à pensão da Carminha. Lá estávamos nós. As gurias estavam demorando. Já tínhamos bebido uma cinco ou seis Brahmas da caixa de Antarctica que estava sob as barras de gelo.
Foi então que, nos demos conta. Fazia já quase meia hora que Quimeras e El Cantor – o garotão espadaúdo e bom de soco que estava na nossa aula, tinham sumido da mesa. Tio Banda foi o primeiro a abrir o bico:
- Ei, cadê o Quimeras e El Cantor? – perguntou como se quisesse resposta.
- Foram ver se tinha alguma guria dormindo – informou Maionese.
Eu e Pezão nos entreolhamos. Corremos os olhos para os olhos de Tio Banda e Maionese e sorrimos, somando os ares de cumplicidade... Tio Banda, expedito, baixando a voz e afastando o copo para o lado, sussurrou sugerindo:
- Eles tão muito calados. Vamos dar uma olhada no que eles estão fazendo..
- Hmm, aí tem. Acho que o El Cantor tá comendo o Quimeras... – Disse Maionese.
Pô, lobo não come lobo e a gente nunca usou as camas das gurias quando elas não estão aqui... – esbravejou Pezão.
Em seguida, nos levantamos e, sem fazer ruído, subimos a escada que levava a um mezanino cheio de portas. Nós fomos abrindo uma por uma. Nada. Lá no quarto número 5, abrimos e enfiamos a cara. Os quatro ao mesmo tempo. E não deu outra. Eles estavam mesmo fazendo o que a gente tinha pensado.
Mas, a vida não é simples assim. O que se pensou que era, não era bem assim. Eles estavam numa boa. A gente ficou até meio chateado de interromper o lufa-lufa da dupla, mas gritamos a uma só voz:
- O que é isso, companheiros?!?
Flagrados no ato. Eles desviaram a atenção um do outro e se voltaram para nós. El Cantor, forte, suado, esbaforido, estava sobre o Quimeras... Sentado no Quimeras!
E Quimeras, de peito pro ar, estava enfiado até os gorgulhos no El Cantor. Sem demonstrar espanto, El Cantor não perdeu o rebolado. Deu uma ajeitadinha na posição, acomodou-se melhor no pratilevas de Quimeras e nos surpreendeu de novo:
- Aí ó! Por essa, vocês não esperavam!
- ?!?
- Surpreeesa! Ó eu aqui ó, um baita macho, sentado na manjuba dum puto! Você já tinham visto isso na vida, um macho dando pra um viado?!?
E riu feliz e descontraído, como se aquilo fosse apenas um prêmio a nossa curiosidade. Fechamos a porta, voltamos ao salão. Deixamos o dinheiro das cervejas em cima da mesa e nos mandamos. Naquela tarde, não esperamos pelas gurias.
Levou tempo para readmitirmos Quimeras na nossa turma. El Cantor nunca mais foi convidado para as nossas gazetas de quarta-feira.
MORAL DA HISTÓRIA – E você ainda quer botar moral numa história dessas?!?