16 de nov. de 2011

BEDEUZINHO

Joguei futebol muito tempo. Não é para me gabar, mas fui craque do Brasil, do Pelotas, do Farroupilha, do Bancário, do Paulista, do Estrela, do Huracán, do Santa Fé, do Danúbio, do Ponte Preta, do Liverpool às vezes, Racing, da Portuguesa do Patê, do Naoli, do Santa Tecla, do Arranca-Toco. Fui um prostituto de camisetas esportivas.
Só não joguei pelo Fiateci, porque ele já havia fechado as portas e nem no Cometa, dos irmãos Caveira porque eu gostava de ganhar deles. Lá jogavam o Rato, o Diabinho, o Jorginho Spilmann, o Carioquinha, todos bons de bola. Não tem graça ganhar de quem não sabe nada.

Um dos grandes craques com quem tive o prazer de jogar foi Bedeuzinho, grande craque da velha Boca do Lobo. Mas ele já não anda mais por aí.

Quando abandonou a carreira profissional, Bedeuzinho permaneceu pelas cercanias do time da Avenida, como se fosse uma peça do s móveis e utensílios, um patrimônio do clube.

Era uma figura fácil e carimbada nas redondezas áureo-cerúleas. Tinha sempre histórias pra contar. A vida lhe foi ingrata. Saiu dos gramados com a família meios desmanchada, as finanças meio abaladas, na verdade, sem um tostão no bolso.

Nem com tudo que passou, seu espírito perdeu a ginga nem a malandragem que só os vestiários do futebol ensinam. Era um anedotário ambulante. Protagonizava a maioria das façanhas que contava e inventava. Tinha presença de espírito e tiradas incríveis; não perdia uma...

Esta que conto agora, eu vi de perto. Paulo de Souza Lobo – o Galego era o treinador do Pelotas que fazia, naquela temporada, uma campanha sofrível no Gauchão. Certo sábado, o time jogaria à tarde em Novo Hamburgo, contra o Floriano, time do goleiro Periquito – uma muralha.

A comitiva estava entrando no ônibus, com Galego organizando o embarque. Os atletas se encaminhavam, em fila indiana, para seus lugares. Bedeuzinho – que já era carta fora do baralho – furou a fila e foi se infiltrando. Galego deu-lhe um basta. Colocou-lhe a mão no peito e preveniu:

- Peraí, Bedeu, primeiro entram os que jogam.
- Ah é?!? Então desce todo mundo! – indignou-se Bedeuzinho.

Eu quis saber do que se tratava:

- O que é que houve Bedeuzinho?
- O home aí disse que só entra quem joga...
- Tá certo, ele, Bedeu.
- Tá nada. Ali só tem cabeça-de-bagre. Se é por jogar bola mesmo, então eu vou sozinho nesse ônibus.

E há muitas outras. Uma delas foi comigo mesmo. Ele ainda tentava manter no caminhar certa fidalguia de Zumbi dos Palmares.

E botava banca sempre que podia. Eu entrava naquela tarde de muitos anos que já se foram na sala da diretoria do Pelotas para uma reunião negocial. Dei de cara com Bedeuzinho, todo engravatado como gostava de andar, ainda que de colarinho branco amarrotado e poído e, de passagem já fui logo, em voz alta, simulando que o provocava:

- Bedeu, você não jogava nada.
- E você, Garanhão, nunca vai ser treinador de futebol!

Ele era assim mesmo. Tinha raciocínio rápido e agudo como era seu jogo. O recado espirituoso, fingidamente irado que me atirou de volta foi claro: um cara que não reconhecia seu futebol, não poderia mesmo entender nada de bola. O sorriso vitorioso em seu semblante quase feliz me valeu o dia. Era como se Bedeuzinho tivesse marcado mais um de seus gols de placa.
Bedeuzinho continuava sabendo driblar a vida como poucos são capazes de fazer nos lances mais retrancados desse duro campeonato que é a existência.

MORAL DA HISTÓRIA – Aquele que muda quando perdeu a sorte e a fortuna, mostra que não as havia merecido.