Juliné da Costa Siqueira, pai do meu amigo e ghostwriter para muitas ah/venturas e redator do livro O Garanhão de Pelotas, em que sou o principal, uno e indivisível protagonista, era uma astuta Raposa dos Tribunais do Júri. Já falei dele em outros capítulos. Ele daria, mais que um livro, uma coleção completa.
Era mais uma sessão do Júri. Corria o julgamento nos salões da Biblioteca Pública de Pelotas. O caso era escabroso para a época, meados dos Anos-50, e absolutamente corriqueiro e banal como qualquer escândalo ministerial de hoje: dois tarados tinham estuprado e matado uma menina de nove anos de idade. O crime convulsionou a cidade.
Juliné era advogado dos pais da vítima. O júri era presidido por um juiz que o velho raposão detestava pela arrogância, pelos maneirismos, pela soberba, pela empáfia, pela prolixidade e pelo pernoicismo. Não, não se engane, não era nenhum ministro desses que hoje são emoldurados nos programas da TV Justiça. Era só um prenúncio pedante do que seriam esses magistrados ungidos pela Presidência da República.
O criminalista meio lenda-viva das barras dos tribunais daquela região tinha como companheiro de defesa um jovem e promissor advogado, recém saído dos cueiros da faculdade, este seu Garanhão de Pelotas.
A casa da Justiça estava cheia, lotada de assistentes de todas as camadas da sociedade: jornalistas, radialistas, acadêmicos de direito, figuras populares, representantes das forças-vivas da comunidade...
A sessão do júri corria normal e os defensores dos réus já tinham falado. Chegou a hora da Defesa. Logo depois da saudação inicial, sob a expectativa silenciosa de todos, Juliné abriu sua peça de oratória com uma solene e instigante provocação ao juiz presidente da sessão:
- Infelizmente, as togas da Magistratura escondem uma pandilha de sevandijas...
Não se ouvia uma mosca voando. O juiz bateu com o martelo e interrompeu o discurso:
- Modere seu linguajar. Esta presidência não aceitará ofensas...
- Ofensas, Meritíssimo?!? Que ofensas? A Magistratura esconde sim, uma pandilha de sevandijas!
- Isso é uma ofensa! - retrucou o juiz, sem mostrar muita segurança quanto ao significado daquilo.
- Vossa Excelência sabe, por acaso, o que é uma pandilha de sevandijas?
- Vou cassar sua palavra! - desconversou o magistrado.
- Vossa Excelência teria todo o direito, desde que me explicasse porque se julga ofendido, e por que acha que não faz parte dessa pandilha de sevandijas.
- Não tenho que lhe explicar nada...
A esta altura a platéia inquieta, já percebera que o juiz não sabia o que significavam aquelas palavras que tomara como chulas e ofensivas. O juiz notou que os presentes já o olhavam como se fosse um despreparado, um burro, dirigindo um julgamento.
- Não me admiraria, Meritíssimo que mesmo sem saber o que é uma pandilha de sevandijas, Vossa Excelência arrepiasse a lei e me silenciasse.
- Se Vossa Excelência insistir nesses termos, será cassado e convidado a se retirar desta sala.
Eu também sem saber o que queria dizer aquilo, cutucava meu parceiro e sussurrava:
- Ei, Juliné, o que é pandilha de sevandijas? Por que você não pára de implicar com o juiz?
- Ora, meu caro Garanhão de Pelotas, pandilha de sevandijas é pandilha de sevandijas. E não paro porque não gosto desse bodoso...
Esse nosso breve e susssurrante diálogo foi interrompido por mais uma ordem do juiz que pediu silêncio aos circunstantes e autorizou o raposão implicante a prosseguir:
- Continue em outros termos, ou Vossa Excelência será obrigado a se retirar do recinto.
- Obrigado, Excelência... Infelizmente, as togas da Magistratura escondem uma pandilha de sevandijas...
Foi o que deu. A paciência do magistrado esgotou. Ele decidiu. E, usando sua prerrogativa de dono da lei e da ordem naquele momento, ordenou a saída do advogado do processo e do salão do julgamento. Juliné levantou-se e foi acompanhado por mim até à porta de saída do tribunal.
Juliné, de braço dado comigo, ainda tinha um brilho de satisfação nos olhos que refletiam a admiração da platéia que chegou a ensaiar uma salva de palmas para ele e uma vaia para a confessada ignorância do juiz, mas conteve-se pelo som das tradicionais batidas de martelo e da voz tonitruante do eminente presidente da já tumultuada sessão:
- Silêncio, Silêncio no recinto! Ou mando evacuar a sala!
Nem um pio. Silêncio sepulcral. Quase... O pessoal, já com jeito de torcida à espera de um gol, escutou a rápida conversa entre nós dois:
- Pronto, Juliné, sei que você conseguiu o queria...
- E o que é que eu queria, Garanhão?
- Fazer o juiz passar por burro na frente dessa gente toda.
- E Fiz - sorriu glorificado, olhando para o mundaréu de gente que se aproximavam, quase pedindo autógrafos, afagando-o com olhares e expressões de parceria.
- Tá bem, tá bem, mas agora me diga, por favor, o que é pandilha de sevandijas? É insulto, é elogio?
- Ora bolas, meu bom Garanhão, pandilha de sevandijas é exatamente tudo o que esse juizinho bobo está pensando. Grupo de safados, aproveitadores, gangue fuleira, sanguessugas...
- Mas, então...
- Então, ele não sabe disso. É um burro. E todo mundo aqui ficou sabendo disso.
- Ora...
- Vai lá e acaba com ele, Garanhão.
O julgamento dos dois assassinos estupradores durou pouco. Foram condenados por sete a zero. Pegaram 30 anos de cadeia, cada um. No outro dia, os jornais deram o resultado do julgamento num rodapé. A manchete falava de outra coisa: Juiz não sabe o que é pandilha de sevandijas.
RODAPÉ - Juizes despreparados condenam o que não entendem.Todo aquele que julga sobre dúvida, precisa estar isento de ira ou de misericórdia.