25 de out. de 2011

FAZENDO GREVE

Pois quem é daqui dessa terra se lembra bem, o país estava nos estertores do governo Jango, bem do jeito que a Última Hora estava às vésperas de virar um pirão sem sal na mão dos donos do que já era o tablóide Zero Hora. Eu era repórter da sucursal que ficava ali, bem pertinho de algumas fronteiras com o Uruguai.

Dali era um pulo passar para o lado de lá, onde se esbaldavam os tupamaros. Dois pulos. A gente podia escolher como entrar: indo por Jaguarão, ou por Santa Vitória, pela reta do Taím, paraíso ecológico nunca respeitado. Sarará era o inquieto fotógrafo daquela pequena casa de notícias de Samuel Wainer, no extremo Sul, às beiradas castelhanas.

Era uma segunda-feira fria de agosto, mês de enchentes. Bom para mandar notícias pelo teletipo, ou pelo maldito telefone que falava para o mundo, mas cochichava para Porto Alegre, ainda cidade-sede da Última Hora gaúcha.

Mais da metade daquela primeira manhã da semana e nem um pingo de chuva. Nem de chuva nem de novidade. Eu levava um cafezinho escaldante à boca, feito na espiriteira da agência, quando Sarará dá um salto na cadeira, vai à janela do edifício, tira-me a xícara da mão, bebe o meu café e diz com um sorriso sacana na cara branca e franca:

- Eu mereço. Tenho notícia! Você quer notícia?
- Merece... É, se tem notícia, merece mesmo.
- Peraí, só um pouquinho...

Se mandou para o telefone. Pediu para a central da CTMR - Companhia Telefônica Melhoramentos e Resistência, de Pelotas, fazer uma ligação para Pedro Osório:

- Por favor, dona, me liga aí com a Estação Ferroviária de Pedro Osório... É. Pedro Osório, Cerrito, Olimpo... É tudo a mesma coisa, o rio Piratini é que separa uma vila da outra, dona... E então deu um número para a telefoinista.

Sarará esperou coisa de meio minuto, não mais, com o fone na orelha, enquanto já preparava os apetrechos de fotografia.

Operou-se então um verdadeiro milagre de agilidade, posto que naqueles tempos uma ligação interurbana poderia levar horas e, não raro, um dia ou dois.  Logo retomou o contato:

- Brigadinho, moça... Alô, alô é da Estação Ferroviária?!? O presidente do Sindicato dos ferroviários taí? Posso falar com ele? Brigadinho...

E, enquanto aguardava impaciente e com medo que caísse a ligação, ainda me pegou pra peteca:

- Garanhão, me faz outro cafezinho que a notícia vem aí. Aquele seu tava gostoso...
E logo voltou ao fone:
- Oi, Pedrão! Aqui é do Sindicato de Porto Alegre! Vocês já entraram em greve aí?!?

Fui obrigado a deixar o café na espiriteira a querosene e me aprochegar do maluco:

- Cara, o que é que você tá fazendo?...
- Psiu, fale baixo...

Interrompeu-se para orientar o "companheiro" sindicalista lá do outro lado da linha:

- Que bosta, meu chapa! Aqui, na Grande Porto Alegre nós já deflagramos a greve. Tá tudo parado aqui, Viamão, São Leopoldo, Novo Hamburgo, desde as cinco da madrugada! Hein?... Não, não. Nós só vamos descruzar os braços se nos derem aumento e melhores condições de trabalho!

Falou curto, grosso e cheio de convicção. Bateu o telefone. E pronto ligou de novo para a CTMR:

- Oi, moça, sou eu de novo. A senhora quer me ligar agora com Porto Alegre? Sim, por favor, é urgente! Brigadinho.

Ele estava estourando de sorte para telefonemas naquela manhã. Não cheguei nem a saber direito o que ele estava fazendo, quando o telefone tilintou. Açanhado, Sarará atendeu:

- Alô. É da sede Central do Sindicato dos Ferroviários?... Oi, companheiro, quem tá falando aí?

Eu não acreditava no que estava vendo e ouvindo. Entreguei a alma ao diabo. Sarará, completou o plano:

- E aí, companheiro. Aqui é do Sindicato de Pedro Osório! É. Vocês já paralisaram? Estão em greve? O que é isso, companheiro?!? Que bosta, meu chapa! Aqui, na Zona Sul nós já deflagramos a greve.

Deu uma breve parada, meteu um gole de café pra dentro, enquanto ouvia qualquer coisa do lado de lá. Retomou a enrolação em seguida:

- Tá tudo parado aqui, Pedro Osório, Cerrito, Olimpo, Pelotas, Rio Grande,.. Hein?... É, desde as cinco da madrugada! Hein?... Não, não. Nós só vamos descruzar os braços se nos derem aumento e melhores condições de trabalho! Tá bom, brigadinho. Boa greve, companheiro!

Desligou. Pegou suas mochilas de fotografia e ainda me deu uma chamada:

- O que é que cê tá fazendo parado aí, com essa cara de bundão? Vamos pra Pedro Osório, cobrir a nossa área de greve. Vambora, Garanhão, vamo!

Você pode não acrediutar, mas no meio do caminho, ele parou o DKW do jornal, foi até um poste desligou um tareco qualquer naquela caixa telefonica chei de fios de tudo quanto é cor e feitio. As ligações com a capital ficaram mais difíceis e demoradas do que de costume.

No dia seguinte, a greve dos ferroviários era uma realidade. Um sucesso de mobilização. A Última Hora furou todo mundo. Não havia um trem se mexendo sobre os trilhos... Era tudo dormente no Rio Grande do Sul. Os outros jornais - Correio do Povo, Diário de Notícias, Folha da Tarde - comeram barriga.

Só começaram, a dar notícia no segundo dia da paralisação. O movimento durou a semana toda. Parece que não deu em nada.

Mas me deu trabalho. Tive que mandar boletim atrás de boletim para a matriz da Última Hora. Sarará ganhou um prêmio pela série de fotografias do movimento grevista. E eu, a obrigação de fazer cafezinho pra ele até a outra segunda-feira.

MORAL DA HISTÓRIA - Nessa horas em que o Garanhão perdia o caráter ele não levava em conta que uma reportagem pudesse se parecer com um livro mal feito, um livro de páginas escritas em laudas corridas e muito às pressas. Tá bom, confesso, hoje esse velho Garanhão de redações não poderia - sem uma pontinha de cinismo - reclamar contra a eterna campanha do PT a favor da censura à liberdade de imprensa.