Vinícius vendia a fama de prepotente bonito, novo-riquinho truculento, metido a valente. Comprava briga por nada. Usava seus conhecimentos de acadêmico de Direito para bancar o defensor dos mais fracos. Só encarava parada dura. Sabia brigar e gostava de brigar. Um craque em briga de rua. Seus feitos eram contados pelas rodadas de exibição de vantagens que fluíam, com freqüência, pelas mesas de bares e restaurantes da cidade.
Num desses rabos sujos de uma velha e cansativa noite de farra, ele chegara de um baile na zona rural e resolveu tomar a sopa da madrugada, no Boteco-24, um tradicional desaguadouro de tragos e mágoas noturnas.
No ranking da revista 4-Rodas, era um bar copo-sujo que parecia um vagão de trem. Havia mesas para quatro clientes, dos dois lados de um corredor que terminava no balcão, onde em banquetas de caubói, o freguês comia e bebia suas dores e suas mentiras. Os mocinhos da elite apareciam sempre por lá; as mocinhas, não.
O lugar estava cheio. A clientela tinha de tudo: garotos da alta, pés-rapados, brancos, negros, mulatos, meninas de pensão e mulheres da vida. Tudo já comido e bebido. Ou só curando o porre na base da sopa e do caldo verde.
Vinícius mal botou o pé na soleira da porta e seus ouvidos de tuberculoso, captaram uma ofensa que partira de uma mesa, bem no meio da casa na lateral esquerda do bar, ocupada por um terrificante quarteto de enormes crioulos, certamente egressos da estiva do porto de cabotagem de Realeza.
Ele os conhecia da beira do cais. Já tinha comprado confusão com um deles, num puteiro lá por perto, fazia pouco tempo. Agora, a provocação fora algo assim, parecido com:
- Ei, chegou aquele branquelo fiadaputa...
Vinícius fingiu que nada escutara. Caminhou calmo e firme, com um sorriso congelado no rosto, na direção do balcão lá no fundo. Quando chegou à mesa do provocador, encarou o quarteto.
Seus membros – enormes, diga-se de passagem - tomavam uma suculenta canja em suas terrinas de cerâmica. Vinícius baixou a cara junto à cara do homenzarrão negro que o chamara de fiadaputa e, olho no olho, boca juntando o seu bafo de uísque ao bafo de comida do desafeto, perguntou com voz grave e cavernosa:
- O que tu tá fazendo aqui, no lugar dos brancos, negão feio?
- Tomando sopa, palhaço.
- Então, bom apetite! Cuida aí desse frango!
Propositadamente nojento lançou uma cusparada no prato do inimigo e, abrindo o sorriso mais branquelo que podia, retomou a passos de solene cadência a caminhada rumo ao balcão.
A meio caminho sentiu no ombro o peso da manopla do estivador. Virou-se e tomou um murro no nariz. O sangue encheu sua garganta e toldou seus olhos. Assim mesmo, reequilibrou-se e devolveu a gentileza. Pegou mal: o golpe entrou embaixo da mandíbula e derrubou o negrão.
Daí pra frente, não contou, mas deve ter levado uns vinte socos na cara; dez nas costelas e nada menos de uma dúzia de pontapés no estômago e nos escrotos que até podiam ser roxos, mas não eram de ferro. Gritou, gemeu e sentiu uma dorzinha que lhe abandonava o saco e invadia o esfíncter. Ah! Que vontade ele sentiu de dormir e ir pro céu...
Dado por vencido foi abandonado pelos estivadores que voltaram à mesa, como se nada tivesse acontecido. Pediram nova rodada de sopa e voltaram à tarefa de acabar com a ressaca.
Meio minuto depois, os dois negros que estavam de costas para Vinícius, mergulharam de cara dentro das terrinas com sopa escaldante. Os pratos se partiram. Eles quebraram a cara.
O caldo virou molho pardo. Logo Vinícius virou a mesa onde ainda estavam dois deles e chutou os dentes de um e a testa do outro, sem que ambos tivessem tempo para qualquer reação. Agora eram os estivadores que dormiam. Vinícius pegou um lenço, estancou o sangue do nariz quebrado e chutando a cabeça de um que lhe pareceu ainda acordado, saiu calmamente do boteco. Antes de chegar à rua, ainda gritou para o dono da casa:
- Bota a despesa toda na minha conta. Amanhã eu pago tudo!
Estou lhes contando assim essa historieta de bar de uma das madrugadas da minha cidade, porque foi assim que ela me foi contada pelo próprio Vinícius.
Acontece que, naqueles tempos idos, eu era médico residente de um dos hospitais privados que atendia como se fosse público.
Fui acordado no meio de um sonho divinal que me enrolava nos lençóis das três mulheres ideais que, muito mais tarde, seriam as minhas inseparáveis secretárias-executáveis.
Estava pronto para dizer que eu não estava, quando a enfermeira me disse que se tratava de um tal de Vinícius, um cara bonitão, meio amarrotadão, que insistia em ser meu amigo e só queria ser atendido por mim.
Daí a dez minutos, um pouco menos, Vinícius tentava me enrolar com uma daquelas histórias que só os pinguços que se metem em confusão nas madrugadas conseguem inventar.
Começou dizendo que tinha sofrido um acidente de carro e batido com a cara num poste. Pediu-me também um remédio qualquer para aquela dorzinha chata que estava sentindo no ânus. Não resisti e entrei no jogo:
- Tá doendo aí?!? – perguntei enfiando o pai-de-todos no seu orifício búndico.
. Não é bem uma dor... – Disse ele tentando escapulir do dedão.
- Ai, ei, ei Dr. Garanhão... Sai, sai. É só uma dorzinha assim ó...
- Assim, assim?... – Prossegui de dedo enfiado nele por cima das calças.
- É assim, ó. Uma vontade de ir aos pés...
- De ir aos pés?
- É. É... Vontade de cagar. Cagar, meu querido! E sai daí! Sai daí!!!
Saí. Saí e dei uma risada na sua cara, antes de ameaçar:
- Se você não me contar mais essa briga eu não tiro o dedo daqui... Vamos, desembucha Vinícius, com quem foi dessa vez?
E foi assim que eu fiquei sabendo de tudo. Ele me garantiu que só foi às vias de fato por que, bolas, fiadaputa é rapadura! Só por isso eu pude lhes contar esta aventura. Ah sim, dois anos e meio depois, Vinícius morreu de uma rapadura chamada câncer nos testículos.
MORAL DA HISTÓRIA – É na audácia que se escondem os grandes medos.