Depois de mil anos, o Garanhão de Pelotas se encantou pelos olhos de uma gata de cabelos pardos, uma gata leo/parda, para ser bem franco. Uma tigresa, com certeza. E nessa fase de amor, sempre que se encontravam tinham mil histórias, claro, para contar.
Entre eles, o passado relutava em manter sua verdadeira identidade, estava sempre presente. E, não raro, o melhor das recordações que repartiam, é que elas nem eram assim tão verdadeiras. Alguns sonhos, assim como alguns filmes, haviam mudado de enredo.
Muitas coisas que repassavam e até muitos lugares que revisitavam, tinham mudado de cor, de tamanho, de estilo, de clima; em alguns bares, até de dono.
O próprio Conjunto Nacional já não era mais - apesar da revitalização - o maior shopping da América Latina.
Naquele início de noite, resolveram revisitar o velho e gostoso paraíso dos salsichões bávaros, o tedesco refúgio Fritzlang - numa das reentrâncias da Asa Sul que poderia ser chamada até de uma esquina de Brasília. Escolheram a mesa do canto lá do fundo, à beira do balcão que fazia fronteira com a boca da rua de movimento escasso.
Foram lá no velho Fritz rebuscar história, revirar passados, recapturar antigos bons momentos de vida que um e outro haviam desfrutado em outras queridas companhias. O passado não lhes despertava nenhum ciume. A não ser quando se transformava em presente. Quando o ontem vira hoje, ganha vida e mexe com a gente.
Os primeiros passos no Fritzlang revelaram ao Garanhão e à Tigresa que o lugar já não era mais o mesmo: menos charme, menos gente, menos algaravia, mais restaurante do que um bar legítimo da Bavária... Os rostos já não eram mais os de ontem; o pessoal de hoje ali da casa, muito menos.
Acomodaram-se. Veio o garçom. E foi. A entrada foi de beringelas recheadas de tomates desidratados. Um uísque com três pedras de gelo em uma dose chorada acima do nível do lago Paranoá para ele; um xarope light com o sigilo da Coca, para ela.
Antes que o garçom partisse, em busca dos filés de frango com salada à moda germânico-pioneira social, o Garanhão de Pelotas - meio em desencanto - provocou, sarcástico, o serviçal:
- Agora vamos querer refrigerante. Duas Cocas, com gelo e limão. Mas... Copo limpo, viu?
Pouco depois, o garçom chegava com o pedido: os frangos à milanesa, a salada e dois copos. Com a mesma gentil e estudada indiferença profissional que mantém os garçons à recomendável distância da clientela, ele quis saber:
- Foi o senhor, ou a senhora... Qual dos dois pediu copo limpo?
E sentindo-se vingado, afastou-se com um sorriso de hipocrisia na cara. O Garanhão e seu bem-querer tiveram ali mesmo, naquele momento, a certeza de que nem sempre o passado é teimoso quanto a sua essência e não consegue estar presente. O Fritzlang de hoje não é nem sombra do Fritz de ontem.
MORAL DA HISTÓRIA - O melhor profeta do futuro é o passado... Ou, os que não se recordam do passado, estão condenados a repeti-lo... Ou, o tempo não perdoa nada daquilo que se faz sem ele. Ou, ainda...