14 de mai. de 2010

Bons Tempos Aqueles...

VELHOS ARMAZÉNS
Gilfredo Rodrigues Renck
Educador do IF-Sul


Dentre as saudosas lembranças na paisagem urbana de minha cidade, a que tange mais fundo nos meus afetos é o lento desaparecimento dos armazéns. Quando ensejo em minhas aulas as sessões de rememorações,ao falar nesse assunto, os alunos questionam: ...mas professor, eles deveriam ter ratos,baratas,aranhas e outros bichos mais.

Então devolvo-lhes assim : e os seus sucessores – super,macro e hipermercados – não apresentarão problemas ( embora de outra ordem ), como: vazamentos de gás,corte de energia e falta de sistema on-line? Porém, o que nenhum mega-empreendimentos do gênero jamais poderá ter ( e os armazéns eram pródigos), é essa humanidade,cheia de expressões gentis, que enchiam de mensagens amáveis as tradicionais vendas de outrora.


Até os prédios eram mágicos com aquelas portas de postigos, tendo ao alto vitrôs com rosáceas multicores – hoje peças raras nos antiquários. As platibanda expunham verdadeiras obras de arte trazidas de além-mar: compoteiras,deuses mitológicos,pássaros de asas abertas e cariátides – espelhos culturais imortalizados na arquitetura. Respirava-se em tudo a suave fragrância do encantamento.


Pareço ainda ver atrás do balcão àqueles senhores gordos, bigodudos, de suspensórios e com lápis atrás da orelha. Os clientes eram quase sempre, freguezes de caderno, pois, a época, um fio de bigode bastava como documento de compra. Só em compará-los aos atuais cartões de crédito, promissórias, cheque pré–datados e outros papéis formais (nem sempre muito honrados...) aguça-nos prenúncios de nostalgia.


As mulheres chamavam-se Gessy, Noemy, Wilma , Wanda e assemelhadas, sempre com nomes rebuscados do Y e do W; dando-lhes a casta régia à gênese familiar. Eram comuns no trato interpessoal: senhor, comadre, vizinho, senhorita, madame e outros,não menos corteses, que saíram da moda à pretexto do falso modernismo.


Comove-nos recordar entre secos e molhados e armarinhos (como não citar essas relíquias do idioma), brinquedos de matéria plástica, tinteiro, máquina de flit, pó-de-gafanhoto, graxa patente, goma arábica, ri-do-rato, goma laca, cera Parquetina, querosene Jacaré, sabão Lang, bolinha de gude, pandorga, melado em pote de barro, alpargatas Roda, tamancos coloniais, tripa seca, pedra de isqueiro, mecha para lampião, ratoeira, boneca de pano, creolina, urinol de louça águeda, correames, bacia de funileiro, papel encerrado, crepon, celofane e de seda, agulha para fogareiro Primmus, boa-noite, cordão encerado,fumo em corda, papel Colomy, mamadeira, bico, óleos de mocotó, de peroba e de linhaça, corante para tecidos Guarany, anil, escova e vassoura de piaçaba e artigos de ferragem em geral.

No armário da farmácia, produtos essenciais como: cafeaspirina, óleo de rícino, ungüento de soldado,elixir paregórico, água-da-guerra, emplasto poroso Sábia, linimento de Sloan, pílulas da vida do doutos Ross, regulador Xavier, emulsão de Scott, biotônico Fontoura, sal amargo, óleo de fígado de bacalhau, cera do doutor Lustosa, essência Olina , homeopatias do doutor Humphreys e os tradicionais xaropes ,peitoral de mel guaco e agrião e de angico Pelotense.Para o toucador era imperativo o Trio Regina: sabonete, talco e água de colônia, leite de rosa, sabonete Lifeboy e Eucalol , pó-de-arroz, loção Juvênia,quina petróleo, brilhantina, perfumes Amor Gaúcho, Narciso Negro, Madeiras do Oriente e cosméticos afins.

Como esquecer aquelas prateleiras, forradas com papel-fantasia e biquinhos recortados, onde garrafas de conhaque, vermouth, batida de amendoim e groselha faziam bela companhia às cachaças, onde o cetro pertencia a Marumby-ouro e prata.

Com as barrigas recostadas ao balcão, naquele cantinho a eles consagrado, figuras jamais esquecidas bebericando o habitual martelinho. Bons tempos aqueles ... Portanto, esses mosaicos de doçura sentimental ainda vivificam fatos de um pretérito que o impiedoso desenvolvimento nunca fará esmaecer dos corações sensíveis.


Os cereais eram depositados em barricas, pois nos sortimentos muitos compravam em arroba (unidade antiga = 15 kg). Para atrair os fregueses os produtos de mais vendagem: arroz, feijão, batata inglesa,açúcar refinado, erva-mate, farinha de trigo e canjica eram expostos bem à vista , na porta do armazém, alguns em sacos de linhagem, com as bordas enroladas. Já a alfafa, o azevém, o milho, o farelo e a encerra com as galinhas ficavam na calçada.

Então recordar não é mesmo viver? Como eu gostava de olhar a destreza dos caixeiros, fazendo os pacotes. Seus dedos alternavam-se por entre o papel de embrulho uma trança e, por fim, davam volteios no ar – eram as duas orelhinhas; quantas vezes desfeitas no caminho das casas, por dedinhos sorrateiros... à procura de balas , bolachinhas e outras guloseimas.


Sobre o balcão, três marcos na história dos armazéns: o baleiro (com vidros redondos), a balança de dois pratos e as gamelas (contendo mantas de toucinho, carne de porco, torresmo e, ao avizinhar-se Semana Santa, peixes à salga: bacalhau e seus congêneres lusitanos).


Por tão gratas recordações, sinto-me a própria imagem do gato no cabresto, quando a necessidade impõe-me ir ao supermercado, onde tudo é de uma frieza polar, a começar pelos clientes que parecem comandados por servo - mecanismos, alheios às reações humanas. Os produtos trazem sinais de artificialismo por todos os lados das embalagens aluminizadas – próprias dos astronautas. São tantas as informações que as pessoas não têm tempo de conversar ou sorrir.

Vejamos: ... tem selo ISO de qualidade? ... Olha a data de fabricação. ...Onde esta o carimbo de inspeção? ...É diet ou light. ...Será transgênico? ... Procura a tabela nutricional ! Chega ou querem mais?! Mas nem tudo está perdido. Um tição de esperança reacende os nossos sentimentos quando vamos ao Armazém Colosso ( avenida Duque de Caxias) ou a Banca nº 6 e 7 ( Mercado Público), onde deliciamos os olhos e confortamos o espírito pelo reencontro afetivo com os velhos armazéns. Embora agonizantes (diante da macroconcorrência), lá ainda somos chamados pelo nome, encontramos de tudo um pouco e um pouco mais: sorriso no atendimento, as últimas notícias do dia de viva-voz, a flauta sobre o futebol, a malhação ao atual prefeito e, sobretudo, a solução fácil para os grandes problemas nacionais. E as compras? Ah ! é mesmo. Puxa ... as compras!

RODAPÉ - Essa viagem ao passado descrita por Gilfredo Rodrigues Renck foi repassada ao escritório do Garanhão de Pelotas pelo professor Rubens Reis Freitas.