Há certos dias de Garanhão de Pelotas que nem eu mesmo aguento. A jornada foi exaustiva. Mal tomei banho matinal, fiz um quebra-jejum às pressas e encarei com ferocidade inaudita o computador. Abri o arquivo de um dos três livros que escrevo a um só tempo, já com atraso quanto ao prazo de entrega dos originais à editora.
Comecei o sugestivo capítulo 24 do "Crime na Ponte" um romance policial baseado em acontecimentos fictícios cometidos de verdade por quem tinha amplo domínio dos fatos. Quando me dei conta estava faminto. O relógio de carrilhões de ouro maciço 24 quilates, assinalava aconhegado à parede dos fundos do meu escritório doméstico nada menos do que 23h47.
Acho que aquela pequena sensação de dormência na região glútea já se projetara há bom tempo para o estômago. Fui à cozinha, assaltei a geladeira e montei às carreiras o meu sanduba preferido, o croque montier.
Usei sem cerimônia quatro fatias de brioche, dois ovos, um copo de creme de leite fresco, queijo ralado tipo gruyère, juntei duas fatias de presunto cozido e temperei com sal e pimenta-do-reino. Saboreei o meu croque montier deglutindo aquilo que em Pelotas - a pátria pequena que deixei lá no Sul - se chama de frapê de banana. Morta a fome que estava me matando, desliguei tudo e me desliguei de tudo.
Cansado, ignorei - como todo mundo ignora a banheira de hidromassagem - e fui direto à ducha do fim de mais um dia de intensa labuta intelectual. Estava caindo pelas tabelas. Fui para mais uma jornada de alcova. Entrei às escuras no quarto, para não acordar nenhuma das três secretárias que estavam a dormitar sobre minha cama tipo king round bed, long, very noble.
Tateando, sem enxergar um palmo diante do nariz, deitei-me sem ruído e sem querer incomodar nenhuma delas. Aí, senti falta dos óculos. Caramba, o Garanhão de Pelotas também pode ter deficiências visuais. Eu tenho.
Levantei-me fui ao water closed, escovei os dentes e voltei para o doce aconchego com a ruiva, a loura e a morena. Hiii, esqueci dos óculos! Refiz a caminhada até à patente, como se denomina a casa de banho e de outras necessidades, na minha doce terra natal.
Procurei os óculos na bancada de mármore de Carrara, daqueles que foram usados pelos romanos para constuir o Panteão. Não os encontrei. Voltei uma vez mais para os aposentos onde, normalmente e de forma até anormal, pratico a minha modalidade esportiva preferida, o jogo de lençóis.
Intrigado, me irritei com o cetim charmouse dos meus travesseiros e decidi que, de uma vez por todas, encontraria os meus óculos Prada que tanta falta me fazem, até quando durmo no ponto de quando em vez.
Eis-me no banheiro uma vez mais. Deparo com minha cara estafada e amuada no espelho art-déco modelo Burberry e... Lá estavam eles, os meus óculos, meus indispensáveis óculos. Bem onde eu jamais poderia esperar que estivessem: diante dos meus olhos, na minha cara, em cima do meu nariz!
Apaguei as luzes. Voltei pé ante pé para a minha confortável king round bed. Mal me deitei, as meninas lépidas e faceiras que a tudo assistiam silentes, como caladas da noite, explodiram em uma estrondosa e debochada risada geral. Riam da minha cara, na minha cara! Não pude ficar brabo com elas. Tinha sido mesmo um fiasco. Entrei com tudo no seu deboche.
Elas não me deixaram dormir. Estou velho e coisa e tal, mas nessas horas mais que usado, sou abusado e vejo tudo com muita clareza. Agora, com licença, vou para a hidromassagem que já é outro dia. Preciso terminar logo os originais desse livro. A editora está em cima de mim.
Ei, gurias! Ei, gurias medonhas, cadê os meus óculos?!?
MORAL DA HISTÓRIA - Nem sempre a falta de atenção nos faz deixar cair ao chão o ouro e as pérolas que estão ao nosso alcance. O desatento sempre pode, num dado momento, notar as preciosidades que estão a sua volta. Aí, então, é só tomá-las para si.